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domingo, 29 de agosto de 2010

O novo tom das narrativas de mulheres - Palavras sobre palavras 20

Eliane F.C.Lima

Pode-se ler, ainda, nos mais diferentes artigos de crítica, que o tom confessional é uma das características do discurso literário feminino, mesmo quando esse discurso se faz em um texto ficcional. E raramente esse atributo é visto como uma qualidade a ser louvada, pelo contrário. Normalmente estabelece um elo, que acaba tornando todos os textos, das mais variadas tendências, como de uma autoria só: mulher. E se nota, mesmo sem intenção, que esse dado o desqualifica como texto literário de primeira linha, encarado apenas como uma autobiografia chorosa.
O estranhamento da colocação se dá por vários motivos. Um deles é que se deve salientar que há um número enorme de textos de autoria de homens, marcadamente confessionais, como os de James Joyce e Marcel Proust, só para citar dois nomes de enorme peso. Mas ninguém se atreveria a anular suas individualidades literárias marcantes e a vê-los apenas como gênero masculino.
Em segundo lugar, cabe a pergunta sobre o que é um texto com tom confessional. Narrado em primeira pessoa e falando de si e de suas dúvidas e questões? Se o critério fosse esse, se correria o risco de cair na armadilha de se considerar Dom Casmurro um texto de caráter confessional: Bentinho, um homem torturado pela dúvida e pelo ciúme, já maduro, empreende uma narrativa autobiográfica, tentando justificar suas ações em relação à mulher amada e ao filho, enumerando juízos extremamente subjetivos sobre o comportamento daquela. Não, o critério não é esse, pois analista nenhum nunca teve dúvida de que aquele romance é pura ficção, que o protagonista e narrador é uma personagem, estando o matiz subjetivo do dito Dom Casmurro bem apartado do próprio Machado, logicamente. Mas essa compreensão dicotômica da realidade intraobra, que parece tão óbvia nesse caso, no que se refere à construção narrativa de autoria de mulher, não tem a mesma sorte.
Os analistas não enxergam, nas vozes que enunciam e se movimentam nelas, seres criados e verdadeiros apenas dentro daquele universo narrativo, independentes da condição de gênero de quem o cria. O lamento é sempre entendido como o de uma mulher, a autora, a qual se esconde, sem consciência, imaginam, atrás de uma boca que se confunde com a sua. Para a autoria de mulher, o velho e verdadeiro “o poeta é um fingidor” do Pessoa, e que pode ser estendido para qualquer criação literária, não vale. Desse modo, a escritora tem negada sua capacidade fabulística.
Lembro-me bem do dia em que, informando a um especialista em literatura de que havia analisado os romances de Lya Luft em minha tese de doutorado, o inexorável “tom confessional”, agora em relação à escritora citada, foi posto na conversa, como justificativa para seu desinteresse em relação a ela, sem qualquer disfarce do sentimento de pouco caso, como se todas as suas personagens femininas fossem tão somente a própria escritora, desdobrada diversas vezes em suas páginas.
Hans Robert Jauss, em sua teoria da recepção, retomando Husserl, faz alusão ao conceito de “horizonte de expectativas” de todo leitor, condicionado por fatores de natureza histórica, sociológica, cultural, estética, mas, principalmente, ideológica (crenças e conceitos adquiridos, dentre outros), quadro de referência que, como aliás em qualquer interpretação inespecífica diante do mundo, é posto em ação, consciente ou inconscientemente, em seu contato com um novo texto. Visto assim, ouso imaginar que um texto de autoria de mulher já estaria, em muitos dos casos, antecipadamente preso a um projeto de leitura, não só porque houve uma época em que os textos de mulheres refletiram sobre si – olhar inicial e oportunidade única de tomar em suas mãos as rédeas da discussão e da descrição sobre elas, o que sempre havia partido e era privativo da visão masculina –, mas também pela memória que os leitores têm de suas condições sociais, econômicas e culturais, memória clichê da qual as mulheres não conseguiram se livrar inteiramente. Portanto a pretendida coloração intimista não é um dado imanente aos textos de autoria feminina, mas está muito mais nas expectativas estereotipadas do receptor sobre ela.
Esse olhar teimoso e anacrônico não faz mais sentido, pois, marcadamente na literatura pós-moderna, as mulheres já superaram suas antigas questões e, inseridas na vida social, refletem sobre o mundo, independentemente de sua condição de gênero e, através de suas narrativas e suas personagens, da mesma forma que se dá com os escritores, questionam todos os aspectos variadíssimos de suas vidas de seres humanos. As mulheres já não se investigam obsessivamente, mas passeiam seu olhar em volta, com a finalidade de agir sobre o mundo.

Aconselho ao visitante a conferir minha postagem sobre Luci Collin, testemunho do que digo.
(Agradeço ao Google a foto acima)

Renovo o convite para meu leitor visitar os blogues Conto-gotas, que hoje completa seu primeiro aniversário (aqui), e Poema vivo (siga).

domingo, 15 de agosto de 2010

O metadiscurso de Adriana Lisboa - Literatura, já 17

Eliane F.C.Lima

Adriana Lisboa faz parte da novíssima geração de escritoras brasileiras. Carioca (1970), morou na França, no Japão e, atualmente, nos Estados Unidos.

Embora tenha começado sua carreira no romance, sua coletânea de contos curtos Caligrafias, talvez, seja a mais difundida. Seus livros foram divulgados na Europa e nos Estados Unidos, tendo integrado diversas antologias, tanto aqui como no exterior.
Seu romance Sinfonia em branco recebeu o prêmio José Saramago, em Portugal (A foto acima é de Daniel Mordzinski).

Obras:
Romances: Os fios da memória (Rocco, 1999); Sinfonia em branco (Rocco, 2001); Um beijo de colombina (Rocco, 2003); Rakushisha (Rocco, 2007).
Contos: Caligrafias (Rocco, 2004).
Escreveu também livros infantis e juvenis e participou de inúmeras antologias.

Para aprofundamento de sua biografia, recomendo uma visita a seu site oficial, clicando aqui e a leitura de sua entrevista em “Saraiva Conteúdo” (veja aqui).

Vamos fazer uma leitura de dois contos do livro Caligrafias. Neles, iremos encontrar um tema recorrente na literatura, o do discurso literário refletindo sobre si mesmo, sobre seus processos – metalinguagem ou metadiscurso.

Caligrafia

Adriana Lisboa

Alcançar primeiro com os olhos a mesa branca da varanda onde se esquece um caderno pautado em que se abortaram alguns resumos, pé ante pé, dissimuladamente, transpor o piso de cerâmica da sala, transpô-la, a sala, ato que se torna muito mais evidente e concreto na imagem dos pés sobre o piso de cerâmica, apoiar a mão direita com preciosismo (em nenhuma hipótese a esquerda) sobre uma cadeira-obstáculo que adormeceu no caminho, debruçar mais um sorriso sobre a capa do caderno onde se lê big explosion em caracteres irregulares e coloridas e se lembrar de que era o mais barato da papelaria, empunhar a caneta de tinta azul contra o canto superior esquerdo da primeira página disponível e observar que um traço quebra a sisudez das pautas nuas, desenvolver o traço em curvas e retas e círculos de acordo com as regras há muito assimiladas numa caligrafia dita elegante e satisfatoriamente legível, despejar no oco da página um monte delas, palavras, entrecortadas por suspiros virgulares e respirações profundas, mas, mais importante, tudo num único impulso que culmine na sombra só então possível de um ponto redentor, encerrando questões, enterrando ideias e imagens e simulacros, o ponto final da vitória ou da derrota, tanto faz, o ponto final depois de uma assepsia sem parágrafo ou ponto-e-vírgula, o ponto final que recolhe tudo o que sobrou e escorre frágil, o ponto final dos pulmões vazios e dos olhos marejados, o ponto final do fim.

A primeira reflexão se dará sobre a linguagem, alguns processos gramaticais, que, em última análise, são o material com que o escritor lida para obter os efeitos que pretende. Se prestarmos a atenção, veremos vários verbos no infinitivo, que vão do início até a linha 13, de “alcançar” até “despejar”. E isso não é sem intenção: o infinitivo é uma forma em que o verbo se apresenta atemporalmente, o que tornaria as ações não datadas, isto é, de certa forma, não pertencentes ao passado, ao presente ou ao futuro.
Há, porém, outro dado relevante: o infinitivo, no texto de Adriana, me parece ter o valor de imperativo, embora seu emprego, além dos dados anteriormente referidos, suavize o aspecto de imposição que a outra forma verbal poderia agregar. O texto se apresenta, desse modo, até quase o final, como um manual de criação literária, uma receita de fazer.
Mas não se prende à imparcialidade de um gênero textual desse tipo. Ao contrário, prevê, sobrepairando a esse aspecto, ações de um agente, uma narrativa anterior – um caderno pautado foi esquecido, resumos foram abortados etc. É impossível não se atentar para a eficácia emotivo-subjetiva do advérbio “dissimuladamente”.
E esse “manual” vai sugerindo ações de forma alguma práticas ou técnicas – “apoiar a mão direita com preciosismo (em nenhuma hipótese a esquerda)” ou “debruçar mais um sorriso sobre a capa do caderno...” –, indicando que sua função é a construção de um texto artístico. Essa construção fica à mostra na interpretação literária que faz para uma das mais corriqueiras definições gramaticais para o emprego da vírgula, qual seja, a indicação gráfica de uma pausa respiratória:”... palavras, entrecortadas por suspiros virgulares e respirações profundas...”. Os adjetivos do eu enunciador violentam, divinamente, a gravidade da gramática.
Ao final, depois da expressão “um ponto redentor”, as formas verbais introduzidas são dois gerúndios – “encerrando” e “enterrando” –, os quais iniciam duas orações com valor de orações adjetivas: um ponto redentor, que encerra questões e enterra ideias.
E aqueles “olhos marejados” estão ali a enfatizar o despertar das emoções, necessário à criação literária.


Pirotecnia

Adriana Lisboa

Um menino sonhou com fogos de artifício.
Anos mais tarde, ele descobriu que as palavras às vezes formavam versos. Tornou-se poeta e durante toda a vida quis relatar o itinerário daquele sonho de infância. Remexeu nos dicionários e encontrou a possibilidade de criar imagens híbridas como sereias ou manticórias(1). Versos que soavam como café fresco, que corrompiam como aguardante pura, que salvavam como um lírio branco.
Anos mais tarde, publicou sua coletânea de poemas. O último deles se chamava Os fogos paralelos e era seu projeto de vida levado a cabo: fogos de artifícios transformados em versos.
Anos mais tarde, certa leitora comprou a coletânea. Ao enveredar pelo último poema, percebeu que as palavras assumiam cores diferentes e brilhavam sobre o fundo negro da página branca, ofuscando as estrelas, e impregnavam todo o livro com um discreto cheiro de pólvora.

(1).No dicionário Caudas Aulete digital só há alusão à palavra “manticora”: “gr. Mantikhoras (animal fabuloso com corpo de leão e cabeça de homem)”. Acredito que seja esse animal a que o texto se refira.


No segundo conto, o discurso metalinguístico vem mais dissolvido numa narrativa, subliminarmente apresentado. Ainda assim, é claro o enfoque da luta travada pelo escritor para conseguir trazer para o texto o pensamento ou emoções que deseja. Obter das palavras que emanem “um discreto cheiro de pólvora” é magia pura, é transformar sentimentos em signos linguísticos, quer dizer, torcer um nível de realidade para outro, trabalho de Hércules a que o escritor se entrega, modesto e solitário, longe dos olhos do leitor. A ele só é dado o presente do “ponto final do fim”.

Convido o visitante:
1. a visitar meus trabalhos acadêmicos em "Páginas" (ver, à direita, depois de "Arquivo do blogue");
2. a ir ao site do Núcleo Interdisciplinar de Estudos da Mulher na Literatura (NIELM)/UFRJ por aqui.
3. a ver, ainda, minhas atualizações de hoje em meu blogue
Poema Vivo (vá por aqui) e Conto-gotas (clique aqui).