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quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Parte IV - Os fenômenos fundamentais da Criação Literária

O gênero Lírico

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais) 
 
A presente postagem terá como objetivo fazer uma análise de três poemas – gênero lírico –  sob o ponto de vista da teoria defendida por Käte Hamburguer, a estudiosa alemã, que já vimos examinando. É interessante relembrar que a tese de seu livro sempre citado é de que há uma “lógica da criação literária”, identificável em seus aspectos linguísticos. Aqui enfatiza-se, resumidamente, alguns pontos levantados antes.
1. Exame da tensão conceitual entre “criação literária” e “realidade”,  sendo que “realidade” aparecerá apenas em seu sentido de confronto ou relação com a ficção (o modo criado e representado pela literatura narrativa – romance, conto etc – e dramática): a narração, que faz as personagens falarem por si, de maneira mimética, no sentido aristotélico (não incluindo o gênero lírico) .
2. Como estratégia, a teórica, que deseja estabelecer a estrutura da linguagem poética (referindo-se à da ficção e do drama), examina os critérios da linguagem não poética – a comprometida com a realidade –, ou seja, o sistema enunciador da linguagem. A noção de enunciado de realidade (e não da realidade em si, observemos) fornece o critério decisivo para a classificação dos gêneros literários.
3. O enunciado, desse sistema enunciador da linguagem, que sempre é um enunciado de realidade, é a enunciação de um sujeito-de-enunciação sobre um objeto-de-enunciação (o conteúdo). O caráter e a função do enunciado são reconhecidos pelo enfoque no sujeito-de-enunciação. Atenção: a presença desse sujeito-de-enunciação (expressão da realidade) indica que não há ali gênero narrativo ou dramático.
4. Mas a fórmula da enunciação (sujeito-de-enunciação sobre um objeto-de-enunciação) é válida para a criação lírica também. O gênero lírico seria um enunciado de realidade, portanto.

Como a atual postagem será sobre o gênero lírico, é importante atentar para alguns dados importantes:
A. Haverá a presença de um sujeito-de-enunciação sobre um objeto-de-enunciação. Haverá, como a estudiosa nomeia em suas aplicações sobre os textos, um polo-sujeito relacionado a um polo-objeto. Ou seja, um poema lírico é experimentado como o enunciado de um sujeito-de-enunciação (o tão discutido eu lírico).
B. Se o princípio estrutural do lírico é um sujeito-de-enunciação enunciando sobre um objeto (como enunciado de realidade), esse gênero não pode ser comparado com os gêneros épico e dramático (não constituídos por um sujeito-de-enunciação). Seu lugar na criação literária se situaria no sistema enunciador da linguagem.
Aceitos esses elementos como formadores do gênero lírico – enunciado de um sujeito sobre um objeto –, tal qual os outros enunciados de realidade, certas particularidades específicas desse gênero, porém, devem ser observadas:
.  Mesmo um título de poema, indicando referência objetiva, não significa que as enunciações do poema visem o objeto.
. E o seu inverso: em toda enunciação lírica, se conserva uma referência objetiva: o objeto não desaparece, mesmo não sendo mais o alvo prático da enunciação, mesmo não sendo inteligível em sua substância real. O objeto permanece ponto de referência da enunciação lírica, não por seu valor próprio, mas como núcleo para ser produzida a associação de sentidos.
. Outro dado fundamental: a enunciação, no lírico, pode se libertar do relacionamento real com o objeto, parcial ou quase totalmente, para voltar a si mesma, ao polo-sujeito. Retira-se para o que Hamburguer chama de “contexto sem compromisso de seu poema”, libertando a enunciação de qualquer obrigação para com a realidade objetiva.
. O eu lírico (o sujeito-de-enunciação) tem o poder de formar uma enunciação que não vise o objeto ou o real, mas não tem o poder de eliminar-se como sujeito autêntico, real, dessa enunciação: o sujeito tem influência sobre o polo-objeto, mas não sobre o polo-sujeito. O objeto, o possível relacionamento com o real, pode ser transformado pelo sujeito. Porém o sujeito-de-enunciação não pode ser alterado.

Experimentamos, nesse caso, o poema lírico como o campo vivencial do sujeito-de-enunciação, pois o enunciado não visa o polo-objeto, mas atrai seu objeto para a esfera vivencial do sujeito e o transforma.

Então é importante enfatizar a diferença fundamental entre os gêneros;
1. A literatura ficcional é mimese da realidade, porque não é enunciado, é configuração, é “imitação”. É mimese, porque a realidade humana é o seu material. A criação literária ficcional – e aí também a dramática – transforma a realidade em não realidade, ela inventa a “realidade”. A realidade invencionada é idêntica à não realidade, à ficção. Tal mundo fictício não é o campo da experiência do autor, do narrador ou dramaturgo, mas o mundo de seres fictícios, que agem e falam por si.
2. A transformação realizada pelo sujeito-de-enunciação lírico no objeto de sua enunciação é diferente. Ele transforma a realidade objetiva em realidade subjetiva vivencial, mas que permanece como realidade (como essa afirmativa é fundamental para o que vem a seguir, foi colocada em negrito).

A teórica em questão passa, então, em seu livro já citado, a fazer a investigação de uma série de poemas sob os aspectos apresentados a respeito do gênero lírico. A presente postagem utilizará tais aspectos, igualmente, em poemas da literatura brasileira. Foram selecionados três poemas em que o objeto-de-enunciação é muito semelhante, o que facilita a comparação e ressalta os dados examinados com mais precisão, sob a visão da teoria ora estudada.

Madrugada na roça

Luiz Guimarães Junior

Dentro da sombra matinal os campos
Riem-se ao fresco pranto da Alvorada;
Sobre a planície verde e perfumada
Voa o bando dos tardos pirilampos…

O arrieiro, inda tonto de preguiça,
Desperta apenas. Ao bulir das matas
Vêm misturar-se o eco das cascatas
E os lentos dobres da primeira missa.

Sob o véu orvalhado, os olhos dela
Brilham fitando os meus; ao divisá-los
Cuido que Deus perdeu mais de uma estrela…

Rincham, pulando os nossos dois cavalos,
E, através da manhã cheirosa e bela,
Ouve-se o canto festival dos galos!
(ESTRADA, Osório Duque. Tesouro poético brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro. São Paulo. Belo Horizonte: Livraria Francisco Alves. Paulo de Azevedo & Cia., 1926, p. 205.)


A expressão “madrugada na roça”, que é justamente o polo-objeto do poema, elemento da realidade objetiva, aparece uma única vez no título, mas há logo uma clara referência a ele na  primeira estrofe com o termo “Alvorada”. E, ao final do poema, a pessoa leitora não terá dúvida em reconhecer esse objeto, que vai, indiretamente, sendo construído por enunciações, também referidas  à realidade, ao longo das estrofes: “sombra matinal”;“Voa o bando dos tardos pirilampos…”; “tonto de preguiça”;“Desperta”;“dobres da primeira missa”; “o véu orvalhado”; ”manhã cheirosa e bela”;“o canto festival dos galos”. Tais enunciações são todas clamente identificáveis com o polo-objeto (conteúdo), elementos da realidade. Se o “pranto” da Alvorada, no segundo verso, pode criar uma certa dúvida de sentido – o que o ligaria menos ao objeto do real e mais, como associação de sentido, ao polo-sujeito –, o termo “orvalhado”, na terceira estrofe, ligado a ele, desfaz a dúvida de interpretação.
Há, então, algumas reflexões, que precisam ser feitas. A produção de Luiz Guimarães Junior – e o poema em questão – pertence ao Estilo de Época nomeado como Romantismo e caracterizado pelo subjetivismo, como se sabe. Nas duas últimas estrofes, o uso dos pronomes “meus” e “nossos” e do verbo “cuido”, na primeira pessoa, garante a presença desse sujeito. No entanto a análise superficial dos elementos utilizados pelo sujeito-de-enunciação aponta para o fato de que a relação estabelecida com seu objeto-de-enunciação, elemento do real, a forma de lidar com ele e caracterizá-lo, se dá de uma forma bastante objetiva: as referências trazidas ao texto para configurar “madrugada na roça” são todas bastante conhecidas por serem elementos da realidade e tradicionalmente ligadas, sob a experiência de quem lê, ao objeto. Não são construções privativas do sujeito-de-enunciação do poema examinado.
O único momento mais subjetivo, ou seja, mais preso ao polo-sujeito, seria a terceira estrofe, quando os olhos da amada são comparados a estrelas (saliente-se ainda aqui que tal comparação já é uma associação de sentido de domínio geral). Porém, observe-se, a amada não é o polo-objeto do texto, mas a madrugada.


Madrugada

O canto dos galos rodeia a madrugada
de altas torres de música chorosa.

O canto dos galos sobe do mundo
ajudando a separação da noite e do dia.

É melancólico levar a lua para longe do horizonte,
e destruir da noite estrelada as últimas flores.

O canto dos galos incansáveis sustenta a hora indecisa.
Somente o esplendor da montanha ofusca as vozes
[que plangiam.

Por quem plangiam essas vozes vagarosas,
no vasto lamento, simultâneas e isoladas?

Pela noite – ainda inclinada para o ocidente em sono?
ou pelo sol – que arranca a terra ao convívio das estrelas?

(MEIRELES, Cecília. Flor de poemas. (Mestres da literatura brasileira e portuguesa. Rio de Janeiro. São Paulo: Record/Itay, 1983. p. 136)
 

No presente poema, o termo “madrugada” do título – polo-objeto do poema, elemento da realidade objetiva – só aparece outra única vez na primeira estrofe. Novamente, ao final do poema, quem faz a leitura não terá dúvida em reconhecer esse objeto, que, igualmente ao texto anterior, vai, indiretamente, sendo construído por enunciações ao longo das seis estrofes: “ separação da noite e do dia”; “levar a lua para longe do horizonte”; “hora indecisa” etc. Algumas dessas enunciações são bastante claras. Outras, porém, como caracteriza a própria estudiosa alemã, não formam conexão objetiva, isto é, não mantêm relação direta com o objeto, são algo diferentes do uso comum, por serem associações de sentido: “… destruir da noite estrelada as últimas flores” (grifo meu); “...ou pelo sol – que arranca a terra ao convívio das estrelas (observe-se a personificação do astro). Já podemos apontar o fato, referido pela autora, de que tais enunciações líricas não estão orientadas pelo objeto, elemento da realidade, estando presas ao polo-sujeito, são peculiares a ele.
No entanto a mesma intromissão de outro conteúdo do real do poema romântico anterior, “o canto dos galos” constitui-se, no poema de Cecília Meireles, um dado marcante a ser considerado como principal sinal, no poema da escritora, desse objeto do real “madrugada”. Se, no primeiro poema, o canto dos galos é caracterizado como um canto “festival”, comemoração do início de um novo dia, atributo geralmente aderido a esse elemento do real, ou seja, consequência natural do surgimento da “madrugada na roça”, no poema da escritora modernista, o canto dos galos passa a ser “música chorosa” – a associação de sentido evidencia uma clara mudança avaliativa por parte do sujeito-de-enunciação em relação ao do poema  romântico – e aparece como causa – a mudança também está nitidamente focada na visão do sujeito em relação a esse objeto – para o fenômeno da madrugada: “O canto dos galos sobe do mundo/ajudando a separação da noite e do dia”.
Ao contrário do poema de Luiz Guimarães Junior, em Cecília, tal intromissão traz em si um paradoxo que se caracteriza por ser um traço do gênero lírico: trazido como objeto do real para ajudar a caracterizar o enunciado “madrugada”, descaracteriza-o como elemento do real, caracteriza-o como elemento lírico, por atraí-lo do polo-objeto para a esfera do polo-sujeito, fazendo com que a conexão direta ao objeto escape imperceptivelmente.
Então, a relação objetiva do canto dos galos, que ecoa pela madrugada, desfaz-se inteiramente, em proveito de uma relação subjetiva e improvável estabelecida pelo eu lírico. Pois “O canto dos galos” - separação da noite e do dia – metamorfoseia-se em “vozes que plangiam”, em “vozes vagarosas”, em “vasto lamento”.
A primeira estrofe já introduz uma enunciação – observe-se aqui de novo o aspecto de “causa”– inteiramente estranha ao polo-objeto principal “madrugada” e, por se organizar, através de conteúdos que não se harmonizam com o objeto real, são uma visão estritamente subjetiva desse sujeito-de-enunciação em seu polo-sujeito: “… rodeia a madrugada de altas torres de música chorosa.”
Assim, volta-se à questão do sujeito-de-enunciação: embora não detectável, no poema, por formas linguísticas específicas de primeira pessoa, como no poema anterior, sua presença, ao contrário do poema romântico, tradicionalmente definido como subjetivo, domina a natureza das enunciações, as escolhas linguísticas para referir-se aos dois objetos do real - “madrugada” e “canto dos galos” – subjetivando-os por meio de um processo que atrai as enunciações do polo-objeto – por estranhas ao real – para o universo do polo-sujeito. Todo o exame anterior comprova a presença e domínio da vivência de realidade desse sujeito-de-enunciação e comprova o poema como um enunciado de realidade.

Tecendo a manhã

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro: e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
                     
                                2.

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã), que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
(MELO NETO, João Cabral de. Poesias completas – 1940-1965. 2. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1975. )

Na criação de João Cabral, o elemento da realidade “madrugada”, dos dois textos anteriores, não aparece explicitado, mas pode ser identificado na ideia de processo sendo realizado com a forma nominal gerúndio em “tecendo” do título e do futuro em “precisará”: uma manhã é “tecida”, para usar o termo do sujeito-de-enunciação, durante a madrugada.
Outro aspecto da realidade presente no texto e que é ligado a “manhã” (madrugada) são os galos e seu canto, que agora é nomeado como “grito”. Observe-se que essa substituição (“festival” em Guimarães e "plangente" em Cecília) não é gratuita, mas valorativa também: esvazia-se todo o peso tradicional do som do galo como algo harmônico e poético – o dicionário Aulete digital define “grito” como “som agudo e estridente” – para algo contundente e que fere os ouvidos. Mais objetividade do que os outros?
De início, ao se fazer a leitura da primeira estrofe, percebe-se de imediato a supressão, por elipse, no segundo e quarto versos, do termo “lançou”. Na segunda estrofe, há um intenso jogo de palavras, por semelhança de som, como a preposição “entre” e o verbo “entrem”; o substantivo “tenda” e o verbo “entretendendo”; o substantivo “tecido” e o particípio “tecido”; uma quase aliteração através de “tela”, “todos”, “tenda”, “toldo”, “tecido”, o que cria – a par de um efeito espetacular, é verdade! – uma dificuldade na leitura, com consequente dificuldade de interpretação. Isso não é objetividade, como se discrimina a seguir.  
No poema cabralino, como em Cecília, os galos e seus gritos são novamente agentes, são eles que “tecem a manhã”, num movimento voluntário de som entre todos eles. Se, na escritora, o canto choroso dos galos separa a noite do dia, isola a madrugada com altas torres, em Cabral a construção de uma tenda, de um toldo, de um balão luminoso, se dá pelo trabalho artesanal e coletivo dos galos. A visão de ambos, plangência na primeira e tessitura de um toldo que “plana livre de armação”, sobre a madrugada ou manhã, no outro, é eminentemente  uma visão restritiva aos sujeitos-de-enunciação, que abandonando arbitrariamente as características de seu objeto-de-enunciação, exilando-se do polo-objeto, reorganizando conteúdos que não se relacionam com ele, refugiam-se em seu polo-sujeito. As “altas torres de música chorosa”, que rodeiam a madrugada, no segundo poema, equivalem aos “fios de sol de seus gritos” com que os galos tecem a manhã, no terceiro poema. Isso é a vivência de realidade desses eu líricos, é subjetividade. Não há conexão objetiva com os objetos, o que há são livres associações de sentido desses eu líricos. 
 
E esse é um dado bastante interessante sobre a poética de Cabral - e novo, eu diria!-, pois a constante conclusão a que se chega  sobre   a poética de Cabral é, por tradição, inteiramente contrária à conclusão acima estabelecida, como se vê na análise de Benedito Nunes, em seu livro João Cabral de Melo Neto. (Coleção Petas Modernos do Brasil/1, Petrópolis: Ed. Vozes/Instituto Nacional do Livro, 1971),:

Nesse sentido, o racionalismo radical que o poeta proclama está bem de acordo com o tom impessoal de sua linguagem. Vem precisamente disso o que há nele de clássico, tomando-se a palavra como designativo do estilo de pensamento ou da atitude criadora que não se fundamenta na individualidade feita valor supremo. (grifo do autor. p. 18)


O estudo dos poemas “Tecendo a manhã”, que faz parte do livro Educação pela pedra, considerado uma poética racional e objetiva, e “Madrugada na roça”, do romântico Luiz Guimarães Junior – subjetividade em um; relativa objetividade, em outro –, sob o prisma da análise lógica de Käte Hamburguer sobre o gênero lírico, evidenciou aspectos desses dois poetas bastante diferentes dos repetidos de forma tradicional, o que revela possibilidades inimaginadas e perspectivas desconhecidas para o aprofundamento do estudo literário. 


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