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segunda-feira, 15 de março de 2010

Leitura - a coautoria de um texto - Palavras sobre palavras 13

Hoje vou tomar a liberdade de falar sobre um conto meu, o que farei posteriormente com outro. Nesses dois casos, vou lançar o olhar de analista sobre um texto ficcional meu. Mas são dois processos diferentes. No primeiro, o que me movia era um sentimento artístico. Nele, as forças em ação são de uma natureza, algumas vezes, inapreensível, por mais que a teoria se esforce por entendê-las e as descrever. É impossível se revelar inteiramente o que ocorre no ato de criação. A análise é posterior e só enxerga o que já nasceu, não a gestação e o nascimento. Na condição de autora e analista, tenho um trunfo a mais.
Uma dessas teorias é a da recepção, ou seja, ela vê com clareza esses dois momentos, o da solidão criativa do escritor e o do encontro do leitor com o texto. A estética da recepção introduz, portanto, no campo da investigação literária, o papel fundamental do leitor como recriador do texto, quando são mobilizadas todas as condições históricas, culturais, geográficas, sociais, desse leitor. Isso fica muito claro, quando se veem as várias leituras dos textos machadianos, por exemplo, através dos tempos. Um romance como Dom casmurro vai apresentando significados novos, como num palimpsesto, revelando escritas escondidas por debaixo de outras, muitas das quais só são possíveis, quando a sociedade muda seu modo de pensar e encarar o mundo. Desse modo, um leitor só chegará a um significado, se suas circunstâncias históricas assim o permitirem. É claro, também, que, numa mesma época e lugar, dois leitores de idades ou níveis culturais e sociais diferentes podem enxergar significados distintos, fazendo do mesmo texto dois textos. E é sobre isso que vou falar. Mas primeiro peço que o visitante vá a meu blogue Conto-gotas e leia o conto “Pulsão”. Depois, volte aqui para continuarmos. Sem isso, é impossível entender o comentário (clique aqui).
Durante a leitura, o leitor imaginava que ia chegar à solução da busca da personagem. Ao final, porém, não há uma resposta clara por parte do narrador. Mas esse leitor guarda algumas ideias que lhe ficaram na última frase: busca - morte – diante daquilo. E cada leitor, colocando em ação seu repertório cultural, social e histórico, aí incluída sua ideologia, imagina ter encontrado a resposta: o religioso vê Deus nesse encontro buscado; o simplesmente místico, após a personagem ter se libertado do corpo, o encontro com sua alma transcendente; o materialista, o encontro com a paz para sempre, com a vida eterna prometida, liberta a personagem, finalmente, de todo e qualquer problema oriundo da vida, interpretação particular e oposta aos dois primeiros.
E há outras possibilidades. E a autora, qual seria a sua resposta? A autora, posto seu filho no mundo, perdeu um pouco o controle sobre ele. Ainda mais que optou, exatamente, por deixar para o leitor a opção, jamais imaginada por ele, de fazer sua própria ficção.

3 comentários:

Márcia Vilarinho disse...

Eliane, empolgante, gostoso e inteligente esse seu texto.Gostei muito, como de todos os textos que você tão bem escreve. Sou sua fã de carteirinha. Obrigada por sua visita ao Madrigal da Metamorfose. Beijos. Márcia Vilarinho.

Marise Ribeiro disse...

Engraçado, eu não havia passado por aqui antes e acessei o Conto-gotas, já que ele é o primeiro dos três na minha lista de blogs, e interpretei direto como uma materialista: o descanso da busca, a paz.
Admiro os escritores que deixam sempre uma lacuna a ser preenchida pelo leitor.
Beijos,
Marise

ju rigoni disse...

Ninguém está livre de si mesmo. Nem autor nem leitor. Do autor, como você mesmo coloca, nunca saberemos a real intenção ao criar um texto. Mas, ao dar a ele um ponto final, ele lançou aos seus leitores um estímulo. No íntimo de cada leitor está a sua vida, - família, carreira, prazeres... Ao terminar de ler, ele terá uma, muitas, ou nenhuma resposta, porque tudo depende da sua cultura, da sua bagagem de conhecimento, da sua sensibilidade, - do seu alcance.

De certo modo, um texto vive e morre na leitura de cada um. Morre para renascer na leitura do próximo leitor, - ou do mesmo leitor -, e morrer de novo. Quando alguém lê, apodera-se de palavras que não lhe pertencem porque lê, fundamentalmente, a si mesmo. Dessa leitura, pode sair enriquecido; pode sair sensibilizado por haver-se identificado com as palavras do autor; pode sair decepcionado; pode sair sem compreender absolutamente nada...

Voilá!

De certo modo, quanto mais um texto morre mais longa é a sua vida. Porque há leitores e leitores. Inclusive os que não apenas lêem. Sobretudo, relêem e relêem, descobrindo, redescobrindo, - explorando, buscando. À procura de si mesmos, relêem, para nascer e morrer de novo. E de novo. E de novo...

Bjs, Eliane, e inté!