Eliane F.C.Lima
Pedindo licença a meus visitantes, hoje vou comentar pela segunda vez um conto meu postado em meu blogue Conto-gotas, o conto “Eva”, e tenho de solicitar a leitura prévia do mesmo para que minhas palavras sejam entendidas, ação indispensável (clique aqui). O comentário a meu texto não é estratégia ou falta de modéstia. Faço-o pelo mesmo motivo que me levou a comentar o outro: tenho a posição privilegiada – nem tanto, como verão adiante – de estar de um lado, como leitora e analista, e de outro, como testemunha do processo de criação.
Vou resumir a gênese do conto, que é interessante. Comecei a escrever a história de uma adolescente, que é chamada pela mãe, em seu leito de morte, a qual lhe revela que ela, a mais nova, não é sua filha. Cortei nesse ponto a narrativa e fui para um flashback, ou seja, para recompor o passado em que a personagem é doada pela família.
Ao voltar para esse passado, comecei a narrar os fatos que iniciam o conto como ele está hoje. Então alguma coisa extraordinária aconteceu: fiquei apaixonada por esse outro momento e ele começou a crescer. Desse modo, a pretensa protagonista do conto eclipsou-se e sua irmã mais velha dominou a cena e se impôs. E o conto se desenvolveu inteiramente nesse rumo, não deixando espaço para a outra vertente.
Voltei ao início e o apaguei. O conto passou a ter seu núcleo narrativo em uma família que perde uma filha e não mais em uma outra que ganha essa filha. Quem lê, passa a não saber absolutamente mais nada a respeito daquela menina.
Em minha opinião, a dramaticidade – esse termo aqui tem mais compromisso com o comover ou emocionar, ser grave e terrível – se adensa: a falta de informações sobre a personagem passa a afligir tanto à mãe e irmãs, quanto à pessoa que lê. Tem um efeito interno na narrativa, mas se estende para fora. O conto ganha, imagino eu, pelo enorme vazio da ausência.
E aqui faço coro com os outros escritores que dizem que, muitas vezes, as personagens tomam as rédeas da narração e não aceitam os destinos ficcionais que iam sendo impostos a elas. Eu pretendia que minha protagonista fosse uma, no entanto era à outra que cabia essa função. Era mais forte, era a dona da história e provou isso até o fim. Tão forte, que é capaz de direcionar a vida de outra personagem, seu irmão, e resgatar a sua vida e a de suas irmãs, libertando a todas.
Entretanto o mais surpreendente foi o que constatei depois do conto pronto, quando o li com olhos de crítica literária.
Sempre tive um grande fascínio, posso assim dizer – absolutamente não religioso, devo salientar –, pelo Genesis bíblico, incluindo a queda e a expulsão do paraíso. E nunca me conformei pelo papel dado à mulher ali, à Eva.
Em um determinado momento do conto, escrevo: “A moça aparou um menino magrinho, choro forte. Deu um sorriso, Mulher no paraíso saboreando a maçã.” Por isso, coloquei o título “Eva”, ainda inconsciente. E verifiquei, então, que, sem a menor intenção e racionalidade, no momento em que escrevia, eu criei uma Eva que duelava com Deus – o pai narrativo –, disputando Adão – o irmão – com ele, e que o vencia, finalmente. E que Adão, na verdade, era expulso do paraíso – a terrinha da família, espaço de domínio do pai/Deus, antítese que se configura em ironia – pela própria Eva. Morto o pai, de forma indireta com o concurso da filha, esta, que marca, junto com suas irmãs a importância do papel da mulher, passa a ser o centro do que visualizei como “o paraíso”, um lugar, agora, dela. Assim, a Mulher inverte a posição que a cultura judaico-cristã lhe havia predestinado.
Mas há um dado de caráter pessoal no conto, o qual vem confirmar minha afirmativa de que toda obra de arte, e a literatura de forma essencial, é autobiográfica. Essa autobiografia se apresenta, quase sempre, de forma velada, claro. Pois, ao criar um texto, toda a experiência de vida que se tem é mobilizada e trazida para o texto.
Meu conto não conta a história de minha vida manifestamente. Mas, sendo a terceira de três irmãs, nós apenas guardávamos lugar para um varão esperado desde o começo. A princípio, a chegada de duas meninas foi aceita como um fato inevitável. Porém, o anúncio de minha chegada veio encontrar pais que já tinham perdido a paciência de aceitar meninas. Fui a terceira menina e esses dois elementos não me favoreciam e vim antes de um filho homem, o esperado, o assinalado. Todas as Evas de meu conto já estavam latentes em minha vida, esperando ser, finalmente, narradas.
Pedindo licença a meus visitantes, hoje vou comentar pela segunda vez um conto meu postado em meu blogue Conto-gotas, o conto “Eva”, e tenho de solicitar a leitura prévia do mesmo para que minhas palavras sejam entendidas, ação indispensável (clique aqui). O comentário a meu texto não é estratégia ou falta de modéstia. Faço-o pelo mesmo motivo que me levou a comentar o outro: tenho a posição privilegiada – nem tanto, como verão adiante – de estar de um lado, como leitora e analista, e de outro, como testemunha do processo de criação.
Vou resumir a gênese do conto, que é interessante. Comecei a escrever a história de uma adolescente, que é chamada pela mãe, em seu leito de morte, a qual lhe revela que ela, a mais nova, não é sua filha. Cortei nesse ponto a narrativa e fui para um flashback, ou seja, para recompor o passado em que a personagem é doada pela família.
Ao voltar para esse passado, comecei a narrar os fatos que iniciam o conto como ele está hoje. Então alguma coisa extraordinária aconteceu: fiquei apaixonada por esse outro momento e ele começou a crescer. Desse modo, a pretensa protagonista do conto eclipsou-se e sua irmã mais velha dominou a cena e se impôs. E o conto se desenvolveu inteiramente nesse rumo, não deixando espaço para a outra vertente.
Voltei ao início e o apaguei. O conto passou a ter seu núcleo narrativo em uma família que perde uma filha e não mais em uma outra que ganha essa filha. Quem lê, passa a não saber absolutamente mais nada a respeito daquela menina.
Em minha opinião, a dramaticidade – esse termo aqui tem mais compromisso com o comover ou emocionar, ser grave e terrível – se adensa: a falta de informações sobre a personagem passa a afligir tanto à mãe e irmãs, quanto à pessoa que lê. Tem um efeito interno na narrativa, mas se estende para fora. O conto ganha, imagino eu, pelo enorme vazio da ausência.
E aqui faço coro com os outros escritores que dizem que, muitas vezes, as personagens tomam as rédeas da narração e não aceitam os destinos ficcionais que iam sendo impostos a elas. Eu pretendia que minha protagonista fosse uma, no entanto era à outra que cabia essa função. Era mais forte, era a dona da história e provou isso até o fim. Tão forte, que é capaz de direcionar a vida de outra personagem, seu irmão, e resgatar a sua vida e a de suas irmãs, libertando a todas.
Entretanto o mais surpreendente foi o que constatei depois do conto pronto, quando o li com olhos de crítica literária.
Sempre tive um grande fascínio, posso assim dizer – absolutamente não religioso, devo salientar –, pelo Genesis bíblico, incluindo a queda e a expulsão do paraíso. E nunca me conformei pelo papel dado à mulher ali, à Eva.
Em um determinado momento do conto, escrevo: “A moça aparou um menino magrinho, choro forte. Deu um sorriso, Mulher no paraíso saboreando a maçã.” Por isso, coloquei o título “Eva”, ainda inconsciente. E verifiquei, então, que, sem a menor intenção e racionalidade, no momento em que escrevia, eu criei uma Eva que duelava com Deus – o pai narrativo –, disputando Adão – o irmão – com ele, e que o vencia, finalmente. E que Adão, na verdade, era expulso do paraíso – a terrinha da família, espaço de domínio do pai/Deus, antítese que se configura em ironia – pela própria Eva. Morto o pai, de forma indireta com o concurso da filha, esta, que marca, junto com suas irmãs a importância do papel da mulher, passa a ser o centro do que visualizei como “o paraíso”, um lugar, agora, dela. Assim, a Mulher inverte a posição que a cultura judaico-cristã lhe havia predestinado.
Mas há um dado de caráter pessoal no conto, o qual vem confirmar minha afirmativa de que toda obra de arte, e a literatura de forma essencial, é autobiográfica. Essa autobiografia se apresenta, quase sempre, de forma velada, claro. Pois, ao criar um texto, toda a experiência de vida que se tem é mobilizada e trazida para o texto.
Meu conto não conta a história de minha vida manifestamente. Mas, sendo a terceira de três irmãs, nós apenas guardávamos lugar para um varão esperado desde o começo. A princípio, a chegada de duas meninas foi aceita como um fato inevitável. Porém, o anúncio de minha chegada veio encontrar pais que já tinham perdido a paciência de aceitar meninas. Fui a terceira menina e esses dois elementos não me favoreciam e vim antes de um filho homem, o esperado, o assinalado. Todas as Evas de meu conto já estavam latentes em minha vida, esperando ser, finalmente, narradas.
Um comentário:
É mesmo interessante esse estender a mão, colher a laranja, e à língua ela apresentar o sabor muito mais ácido e interessante do limão.
Seu post é mais que um comentário; uma aula do que deve ser observado ao se fazer uma leitura.
Bjs, mestra, e inté!
Postar um comentário