Eliane F.C.Lima
Minha postagem de hoje é sobre Helena Kolody e corro o risco de ser confundida com o escritor de novelas, visto que essa é a terceira com o mesmo nome. Mas por ela vale a pena se correr riscos.
Minha postagem de hoje é sobre Helena Kolody e corro o risco de ser confundida com o escritor de novelas, visto que essa é a terceira com o mesmo nome. Mas por ela vale a pena se correr riscos.
A escritora era paranaense (1912 — 2004) e foi a primeira mulher, no Brasil, a publicar haicais (ainda haikais ou haicu), um tipo de composição poética japonesa de três versos, que pretendia passar um máximo de sensações com uma concisão de palavras. Um antigo poeta japonês, um “haijin” ou haicaísta, Matsuô Bashô (1644-1694), elevou tal tipo de poema à arte, como prática espiritual, pois antes dele, era apenas uma forma de entretenimento dos samurais e comerciantes abastados.
Inicialmente, o poema devia ter um verso de cinco sílabas, o segundo de sete e outro de cinco, completando dezessete. Não seria rimado, mas devia enfocar a natureza ou a estação do ano. Mas, claro, os poetas brasileiros não aceitaram essas imposições, como era de nosso temperamento e Guilherme de Almeida, por exemplo, um dos mestres do haicai, usou muito a rima, às vezes internamente:
Inicialmente, o poema devia ter um verso de cinco sílabas, o segundo de sete e outro de cinco, completando dezessete. Não seria rimado, mas devia enfocar a natureza ou a estação do ano. Mas, claro, os poetas brasileiros não aceitaram essas imposições, como era de nosso temperamento e Guilherme de Almeida, por exemplo, um dos mestres do haicai, usou muito a rima, às vezes internamente:
O pensamento
Guilherme de Almeida
O ar. A folha. A fuga.
No lago, um círculo vago.
No rosto, uma ruga.
Paulo Leminsky, o poeta, traduziu Bashô. E a citação de Leminski (leia um poema dele e meu comentário, clicando aqui), nesse momento, vem do fato dele, além de ser um dos principais escritores de haicais e paranaense também, ser amigo e admirador de Helena Kolody, a quem elogiou sem restrições. Abaixo, exemplos de Bashô e Leminski
Solidão
Bashô
Velho tanque.
Uma rã mergulha.
Barulho da água.
(uma das traduções livres: por Cecília Meireles em Escolha o seu sonho – 1974)
Paulo Leminski
soprando esse bambu
só tiro
o que lhe deu o vento
Mas voltemos à Helena Kolody, que recebeu da comunidade nipo-brasileira de Curitiba, em 1993, o nome haicaísta “Reika” por difundir a poesia japonesa, nome que tem uma significação imprecisa, como “perfume da poeta maior”, por exemplo. O sentido do nome, então, marcaria o encanto que o leitor tem com aquele tipo de poema e sua autora.
Vamos ver um haicai de Helena Kolody, com algumas observações em seguida:
Vamos ver um haicai de Helena Kolody, com algumas observações em seguida:
Pereira em flor
Helena Kolody
De grinalda branca,
Toda vestida de luar,
A pereira sonha.
No texto anterior, vemos uma fidelidade maior ao tipo tradicional de composição: o tema é a natureza. Formalmente, não tem rima e está dividido da seguinte forma:
verso 1: De.gri.nal.da.bran (são cinco sílabas, pois a contagem deve ir até a última sílaba tônica);
verso 2: To.da.ves.ti.da.de.luar (são sete sílabas, pois a última palavra deve ser lida como contendo um ditongo. Esse recurso se denomina "sinérese");
verso 3: A.pe.rei.ra.so (são cinco sílabas, pelo mesmo motivo do verso 1).
verso 1: De.gri.nal.da.bran (são cinco sílabas, pois a contagem deve ir até a última sílaba tônica);
verso 2: To.da.ves.ti.da.de.luar (são sete sílabas, pois a última palavra deve ser lida como contendo um ditongo. Esse recurso se denomina "sinérese");
verso 3: A.pe.rei.ra.so (são cinco sílabas, pelo mesmo motivo do verso 1).
Abaixo, seguem-se outros haicais da poeta, já criados de forma mais flexível, com maior grau de liberdade.
Areia
Da estátua de areia,
nada restará,
depois da maré cheia.
Avesso
Seu olhar profundo
olha na poça d'água
e enxerga estrelas no fundo.
Gestação
Do longo sono secreto
na entranha escura da terra,
o carbono acorda diamante.
Luz Interior
O brilho da lâmpada
no interior da morada
empalidece as estrelas.
Sem aviso
Sem aviso,
o vento vira
uma página da vida.
Outros haicais, sem nome específico, o que era outra tendência mais clássica.
Haicais
Deus dá a todos uma estrela.
Uns fazem da estrela um sol.
Outros nem conseguem vê-la.
Xxxx
Corrida no parque.
O menino inválido
aplaude os atletas.
xxxxxxx
O brilho da lâmpada,
no interior da morada,
empalidece as estrelas.
Xxxxxxxx
Tão longa a jornada!
e a gente cai, de repente,
no abismo do nada
xxxxxxxxxxxxxxx
A morte desgoverna a vida.
Hoje sou mais velha
que meu pai.
Mas a poeta não fez apenas haicais. Talvez pela prática ou por seu estilo poético mesmo, seus poemas tenham mantido sempre a simplicidade, um alto grau de limpidez, a precisão característica daquelas composições. A gente quase que identifica, em cada estrofe, um haicai.
Os temas foram, muitas vezes, a análise do ser humano e suas eternas circunstâncias, a inexorabilidade da vida diante da morte.
Os temas foram, muitas vezes, a análise do ser humano e suas eternas circunstâncias, a inexorabilidade da vida diante da morte.
Antes
Helena Kolody
Antes que desça a noite,
imprimir na retina
os rostos amados,
o sol
as cores,
o céu de outono
e os jardins da primavera.
Inundar de sons
de vozes
e de música eterna
os ouvidos
antes que os atinja
a maré do silêncio.
Conquistar
os pontos culminantes
da vida,
antes que se esgote
o prazo de permanência
em seu território sagrado.
Pânico
Helena Kolody
Não há mais lugar no mundo.
Não há mais lugar.
Aranhas do medo
fiam ciladas no escuro
Nos longes, pesam tormentas.
Rolam soturnos ribombos.
Súbito,
precipita-se nos desfiladeiros
a vida em pânico.
Limiar
I
Helena Kolody
Da soturna jornada
Pelas brumosas sendas
Da anestesia,
Não guardei memória.
Sou um pêndulo que oscila
Dos limites da vida
Aos limites da morte.
Rubros lobos me espreitam silentes,
Numa densa garoa vermelha
Que lateja no ritmo da febre.
Venho à tona, por segundos,
E volto ao limo do sono.
Da sede, brota em meu sonho uma fonte:
Água fria em chão de pedra.
No fundo, uma alga se espreguiça
E essa alga sou eu.
Exilados
Helena kolody
Ensimesmados,
olham a vida
como exilados
fitando o mar.
Não estão no mundo
como quem o habita.
Estão de visita
num planeta estranho.
Oscilação
Helena Kolody
A cada oscilar do pêndulo
algo se apaga
ou para nós termina.
De segundo em segundo,
algo germina
ou para nós floresce.
Jovem
Helena kolody
Suporta o peso do mundo.
E resiste.
Protesta na praça.
Contesta.
Explode em aplausos.
Escreve recados
nos muros do tempo.
E assina.
Compete
no jogo incerto da vida.
Existe.
Tempo
Cai a areia da vida
Na ampulheta da morte.
Grafite
Meu nome,
desenho a giz
no muro de tempo.
Choveu,
sumiu.
A poeta também escreveu largamente sobre as viagens que o homem empreendeu ao espaço. Mas, longe de ser uma apologia à tecnologia, Helena reconheceu no fato a mesmice humana, a repetição de sua condição de ser problemático, sendo a adoção da máquina e a descoberta do espaço um desdobramento das relações que estabelece em seu planeta. Tais poemas, enfim, quase sempre, foram uma reflexão social e filosófica sobre ele.
Astronave
Helena Kolody
Soberbo monumento da astronáutica
num pedestal de cifras.
Bezerro de ouro,
cosmonave!
Milhares de famintos
baixaram ao vale da morte,
para que pudesse subir.
Selenita
Helena Kolody
O homem irá viver na Lua,
em cavernas.
Como se alegrará o troglodita,
soterrado em sólidas camadas
de civilização...
Obras
Poemas
Paisagem interior (1941- publica aqui os primeiros haicais); Música submersa (1945); A sombra no rio (1951); Poesias completas (1962); Vida breve (1965); Era espacial e Trilha sonora (1966); Antologia poética (1967); Tempo (1970); Correnteza (1977); Infinito presente (1980); Poesias escolhidas (1983, poemas traduzidos para o ucraniano); Sempre palavra (1985); Poesia mínima (1986); Viagem no espelho (1988, reunião de livros anteriores) ; Ontem, agora (1991); Reika (1993); Sempre poesia (1994 – antologia); Caixinha de música (1996); Luz infinita (1997, edição bilíngue); Sinfonia da vida (1997, antologia e depoimentos da poetisa); Helena Kolody por Helena Kolody (1997, CD especial para a coleção Poesia Falada); Poemas do amor impossível (2002, antologia)
Em prosa: Memórias de Nhá Mariquinha (2002).
Paisagem interior (1941- publica aqui os primeiros haicais); Música submersa (1945); A sombra no rio (1951); Poesias completas (1962); Vida breve (1965); Era espacial e Trilha sonora (1966); Antologia poética (1967); Tempo (1970); Correnteza (1977); Infinito presente (1980); Poesias escolhidas (1983, poemas traduzidos para o ucraniano); Sempre palavra (1985); Poesia mínima (1986); Viagem no espelho (1988, reunião de livros anteriores) ; Ontem, agora (1991); Reika (1993); Sempre poesia (1994 – antologia); Caixinha de música (1996); Luz infinita (1997, edição bilíngue); Sinfonia da vida (1997, antologia e depoimentos da poetisa); Helena Kolody por Helena Kolody (1997, CD especial para a coleção Poesia Falada); Poemas do amor impossível (2002, antologia)
Em prosa: Memórias de Nhá Mariquinha (2002).
4 comentários:
Minha querida
leva-se sempre daqui, mais cultura e informação.
li atentamente e adorei, não conhecia.
Beijinhos
Sonhadora
O que eu conhecia da Helena Kolody, Eliane, era bem menos do que o que você apresenta aqui. Obrigado!
Adoro haicais, que conheci ainda na adolescência, graças ao Millor Fernandes, que sempre explorou o gênero com humor, é claro.
Sua postagem é uma aula enxuta sobre tema, com direito inclusive a umas ágeis pinceladas sobre as regras métricas da poesia em geral.
Vou parar por aqui, brecado pela sincronicidade: o Gmail acaba de informar que entrou um comentário seu la no DS!
Beijos
É de uma beleza, de uma sabedoria... Destaque total para:
"A morte desgoverna a vida.
Hoje sou mais velha
que meu pai."
Abraços, Eliane!
Parabéns, Helena Kolody é ímpar! E dizem que ela morreu virgem, dizem que Fernando Pessoa também.
Abraço.
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