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domingo, 26 de fevereiro de 2012

O narrador, personagem da enunciação - Parte I

Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)
 
O estudo, que se inicia e terá duas etapas, será sobre uma entidade textual, o narrador, o responsável por apresentar uma história a um possível leitor. A enunciação do discurso é de responsabilidade desse ser textual, que, de nenhum modo, deve ser confundido com a (o) autora (autor).
Ele pode estar posicionado externamente, ou seja, não é uma personagem do enunciado (heterodiegético) – é bom se perceber, entretanto, que o narrador não deixa de ser um ser ficcional da enunciação – e, nesse caso, a narração se faz em terceira pessoa, ou posicionado dentro de sua narrativa, sendo uma personagem principal (autodiegético) ou secundária (homodiegético) e, como tal, a primeira pessoa dominará o discurso.
A primeira escolha que o autor faz desses dois aspectos – narrador externo ou interno – já é fundamental para o desenvolvimento da narrativa. O narrador de fora do enredo pode possuir uma onisciência, conhecer todos os pormenores, penetrar no pensamento das personagens. E dará ao leitor a certeza de que o que está sendo contado é a verdade ficcional.
Ao contrário, uma personagem que participa do enredo tem esse conhecimento dos fatos limitado e permite a quem lê a possibilidade de duvidar de sua palavra, por estar envolvida no fato narrado, tornando-se, enfim, uma figura parcial. Foi desse dado que se valeu, por exemplo, o escritor Machado de Assis, ao dar a fala narrativa a Bentinho em seu romance Dom Casmurro. Sua preferência por esse tipo de narrador teve um propósito firme: toda a história e a suposição de traição amorosa de sua mulher Capitu é posta em dúvida por ser um testemunho de um marido enciumado, mergulhado na trama. A citação de Otelo, o famoso ciumento literário, que assassinou Desdêmona, a esposa inocente (Shakespeare), aparece no romance, dando a pista. Durante anos a crítica não atentou com profundidade para esse dado. E Capitu entrou para o imaginário literário como a famosa “oblíqua e dissimulada”, segundo a conceituou o próprio Dom Casmurro. Machado, um mestre, conseguiu, a partir da opção pelo narrador interno, esse efeito ambíguo e deixou para sempre uma dúvida que suscitou inúmeras discussões. O romance tem, pois, como tema o ciúme e não a traição. O foco principal é Bentinho e não Capitu.
Mas a alternativa de um narrador fora do enredo não simplifica a escritura de um texto. Dou-me o direito de selecionar alguns trechos de meu conto “Possibilidades” (o texto inteiro pode ser acessado no link) e encaminho a (o) visitante deste blogue para lá). Pede-se o favor de se ler o trecho inicial, um do meio e o final, em que se ressalta em itálico elementos sobre os quais serão feitos comentários.

Início:
Ele se sentava num banco de praça do centro da cidade e olhava para um prédio enorme qualquer. E imaginava um corpo caindo dali. E o povo, que a princípio tinha corrido de susto, ia se aproximando para ver bem visto, curiosidade sádica de ser humano.
A mulher se chamaria Teresa, com certeza. Tinha sido traída pelo marido. A nonagésima vez, provavelmente. Nas outras, choro, gritos, no final, perdão. Para tomar fôlego, deixar o coração se recompor até a próxima. Embora passasse uns meses ainda com raiva, pensando numa vingança bem doída para ele.

Meio:
Na imaginação do homem sentado na praça, Abreu chegaria, o safado. Viria com uma colega de trabalho – aquilo era colega, toda solicita com o susto dele e cheia de intimidade, parecia ter planos pela morte de Teresa?
Fim:
Com certeza, Abreu, iludido, contabilizaria logo a suposta herança. De seu banco de praça, o imaginador sorria, imaginando como o safardana, dali a alguns dias, odiaria Teresa ao descobrir que ela tinha premeditado tudo antes do gesto extremo.
Por enquanto, do banco, os olhos do homem seguiriam aquele nada, que, finalmente, iria em direção ao estacionamento além da esquina, já de mão dada com o outro nada, que, muito rebolativa em seus saltos altos, ousaria gargalhar, relaxada.

Como se percebe, há um narrador fora do texto que conta a realidade daquela personagem, nomeada “ele”, “homem”, “imaginador” – sempre na terceira pessoa” . Sua história é sentar em um banco de praça e imaginar. Essa seria a narrativa principal.
Mas essa personagem também acaba criando mentalmente um outro núcleo textual, que, apesar de secundário por estar incluído no principal, acabaria se tornando o interesse maior do conto, aparentemente. Veja-se, no entanto, que se o leitor é atraído para esse núcleo, despreza a personagem “Abreu”, se apieda de “Teresa”, isso se constitui num jogo de enganos, pois desde o princípio está explicitado que aquela narrativa é só imaginação. Essa explicitação pode ser chamada, de forma bem-humorada, de “jogar areia nos olhos da leitora (do leitor)”, visto que, a primeira narrativa, a do “homem” “que se senta num banco de praça” também é.
O narrador inicial, portanto, que narra esse homem acaba fazendo um discurso duplo, o seu e o da personagem “imaginador”. Vale a pena assinalar que tal narrador de duas vozes, apesar de alheio ao texto, é tomado em alguns momentos pelas emoções de qualquer personagem e sua pseudoneutralidade se trai: “Viria com uma colega de trabalho – aquilo era colega, toda solicita com o susto dele e cheia de intimidade, parecia ter planos pela morte de Teresa? ”. A fala desse que emite o discurso está repleta da coloquialidade – atentar para o ponto de interrogação – de uma personagem submersa no enredo ou até solidária à opinião de uma (um) provável leitora (leitor).
Então, se percebe que, dependendo da intenção criativa de um escritor, ainda que o ponto de vista seja externo, o narrador pode não ser isento, imparcial e sim, se envolver nos fatos narrados. Evidencia-se ainda que a escolha do foco narrativo – a posição desse ser ficcional da enunciação – tem um peso muito grande para o resultado desejado da criação literária em prosa.


(Aguardo você em meus outros blogues Conto-gotas (link) e Poema Vivo (link).)

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