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segunda-feira, 19 de março de 2012

O narrador, personagem da enunciação - Parte II












Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)


Esta segunda parte terá como foco principal a análise do narrador em Quincas Borba (QB), de Machado de Assis, romance filiado ao Realismo, publicado em 1891, e Memórias de um sargento de milícias (MSM), de Manuel Antônio de Almeida, romance coevo ao período literário do Romantismo, pois publicado em 1854, mas que costuma ser classificado como um dos precursores do próprio Realismo, por fugir aos ditames da escola literária de sua época e profetizar a posterior. É interessante ser salientado que o segundo escritor, tendo sido chefe de Machado na Imprensa Nacional, acaba tornando-se amigo do então jovem, auxiliando-o e orientando-o.
Antes de se iniciar o enfoque dos textos propriamente ditos é necessário se fixar um conceito importante: um deles é a diferença entre a narrativa, a história, caracterizada por seu tempo (desenvolvimento cronológico da diegese) e o discurso do narrador. Eles não são coincidentes e podem mesmo se afastar. Se uma diegese (enunciado) é a história de uma personagem, de seu nascimento, adolescência até sua morte, por exemplo, o discurso do narrador (enunciação) pode começar nessa morte, regredir até o nascimento, caminhar para a idade adulta, regredir de novo para a adolescência, até voltar pra o presente do enunciado. A diferença entre esses dois aspectos – o desenvolvimento cronológico, indicado pelo calendário intratextual e o discurso, dissolvido nas frases do narrador – é fundamental para o entendimento. Essa concepção será trazida para o desenvolvimento deste estudo e o de posteriores.
As duas figuras do narrador, em ambos os romances, são, aparentemente, externas à história (diegese), que é feita em terceira pessoa. A observação, porém, evidenciará que, se tradicionalmente tal escolha apresenta um enunciador onisciente e imparcial, alguns elementos irão apontando um ser que, de fora da história, se envolve com ela, apresentando sua subjetividade – um eu que se assume – claramente.
Nos primeiros dois exemplos abaixo os adjetivos “belo” e “abençoada”, atribuídos a uma determinada época, explicitam o partido que toma o narrador em relação ao objeto narrado.

Os meirinhos desse belo tempo não, não se confundiam com ninguém; eram originais, eram tipo... (MSM – capítulo I)

Quem passasse por aí em qualquer dia útil dessa abençoada época veria sentado em assentos baixos , então usados, … (MSM – cap. I)

Em Machado, a presença de pronomes de primeira pessoa em relação ao próprio narrador externo estabelece um paradoxo discursivo e uma ousadia literária gritante, como se vê nas citações seguintes.

Onde li eu que uma tradição antiga fazia esperar a uma virgem de Israel, durante certa noite do ano, a concepção divina? (QB- cap. XLIII)
Este Quincas Borba, se acaso me fizeste o favor de ler as Memórias Póstumas de Brás Cubas, é aquele mesmo náufrago da existência, que ali apareceu, mendigo, herdeiro inopinado, e inventor de uma filosofia. (QB – cap. IV)
Mas a estranheza da (do) leitora (leitor) não para na subjetividade, no segundo exemplo de Quincas Borba (QB), extrema-se nessa fala do narrador externo, quando cita o romance anterior. A impressão que se tem é de que o narrador do romance Quincas Borba é o mesmo do romance mencionado. No entanto a narrativa naquele é feita pela própria personagem principal, o Brás Cubas. Então fica a dúvida: a quem seria feito esse favor, se os narradores são diferentes, a quem se refere aquele “me” do segundo exemplo? Teria Machado de Assis, esse, sim, autor dos dois romances, se traído, deixando seu discurso dominar a fala do responsável ficcional pelo discurso?
Em alguns momentos de suas falas, os narradores dos textos de M. de Assis e Manuel A. de Almeida vão abrindo mão, ostensivamente, de sua onisciência e declarando sua ignorância a respeito do objeto que narram:

Aqui chegando, não se sabe por proteção de quem, alcançou o emprego de que o vemos empossado, e que exercia, como dissemos, desde tempos remotos. Mas viera com ele no mesmo navio, não sei fazer o que, uma certa Maria da hortaliça... (MSM – cap. I)

A última hipótese trouxe à fisionomia do Palha um elemento novo, que não sei como chame. (QB – cap. LV)
Observe-se que, no primeiro exemplo, se o “não se sabe por proteção de quem” se apresenta, ainda, impessoal, o “sei” já aparece francamente na primeira pessoa, tão paradoxal quanto em Machado.
O estudo do narrador poderia se prolongar, inclusive se se ampliasse a análise para outros textos de outras autorias. Nessas poucas observações, entretanto, já se pôde constatar que o narrador é uma personagem da enunciação que, a par das personagens do enunciado, tem desdobramentos e implicações técnicas de grande alcance.




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