Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ)
A professora e poeta Líria Porto é mineira de Araguari, embora more em Araxá. Publicou o livro Borboleta desfolhada (Canto escuro editora, Portugal, 2009) e De lua (Corpos
editora, Portugal), em editoras de Portugal, mas sua atuação se dá mais
fortemente na Internet em blogues como “Tanto mar”, “Putas resolutas”,
“Balaio porreta”, “ogatodaodete”. Participa também de outros espaços
virtuais da qualidade de “Germina literatura”, “Cronópios" e "Escritoras suicidas". Podemos encontrá-la, também, no blogue "Penetra surdamente no reino das palavras" (link).
Seus
textos são compostos numa linguagem bastante simples e me trazem a paz
lírica também sentida com a leitura de Mário Quintana, o que não quer
dizer que, usando essa linguagem simples, não consiga extrair dela
efeitos poéticos inimagináveis.
Líria Porto
comer dormir e sonhar
usar chinelo de pano
roupa larga leque de abano
rir da morte das desgraças
andar de cara lavada
deixar que a vida nos faça
afagos de vez em quando
e se alguém não gostar
cobrar de ti algo além
não respondas ri e entendas
as pessoas exigentes
correm atrás de si mesmas
e demoram a aprender
o paraíso é o presente
pá lavra e enxada
Lívia Porto
mato e morro
morro e mato
e não é suicídio
nem assassinato
é mato verde
é morro alto
é viver a vida
longe do asfalto
Respingos
Líria Porto
e quando a chuva caía
eu ia com a enxurrada
ia beirando a calçada
descia junto com a flor
e ria a risada d'água
aquela alegria d'água
brincava que era a flor
mas depois sentia frio
lembrava-me então do rio
da flor que o rio levou*
e os meus olhos choviam
eu era como a enxurrada
fui ficando poça d'água
que o tempo choveu
chorou
No
poema “Respingos”, os versos “lembrava-me então do rio/da flor que o
rio levou”, parecem trazer uma outra voz, a de Gonçalves Dias, em
seu poema “Não me deixes, não!” – mania de professora de literatura, em
que persistem sempre versos já lidos? –, os versos de agora sem a vibração explicitamente
trágica, claro, característica do Romantismo, que era o estilo de época
daquele escritor. Se no poema de Líria Porto – pontuação contida, ao
contrário do outro – esse eu poético, parece definir-se por um outro
tom, pois “ria a risada d'água” e sentia “aquela alegria d'água”, a
princípio, tornado assimilação total com a poça d'água – lágrimas, enfim
–, que o tempo chorou, aproxima-se, por via indireta, um pouco mais do
lamento romântico anterior. Ao final da apresentação dos textos da
poeta, transcrevo o texto do escritor romântico – ver o asterisco –, que
é bonito e vale a pena ser lido.
Mas
a poética de Líria Porto também paga seu tributo à presença masculina. O
primeiro desses dois textos escolhidos – até por uma possível sugestão
do título – pode divisar, na leitura, um tema homossexual. Essa leitura,
contudo, demonstraria bastante obviedade e pobreza significativa.
Um
segundo patamar de leitura vai em outro sentido e visualiza o
apagamento da visão estereotipada de gênero. Esse impulso iconoclasta
começaria desde o título, pois, diferentemente da primeira interpretação
dada ao título, descobre ali um jogo brincalhão de polissemia, pois
chama para o texto a realidade dura dos termos contábeis e, por outro
lado, introduz a eterna e clichê oposição “atividade”, normalmente
atribuída a homens e “passividade”, característica imputada a mulheres. O
corpo do texto, no entanto, desconstrói completamente essa visão
culturalmente sedimentada, atribuindo a um ele a suavidade, a doçura, e
ao eu supostamente feminino a secura oposta. A troca de papéis termina
igualmente abençoada.
Líria Porto
falo seco de arranco coisa assim de capiau
ele não - é sedoso nas palavras tem veludo na voz
gestos de moça
apesar da diferença damos-nos bem
ele faz papel de dama
eu viro homem
No segundo poema, onde é introduzido o elemento masculino, a sensualidade transita todo o texto – não fosse o tema o dançar um tango! – e se desenvolve numa oposição: se a expressão “rastrear o cheiro” tem muito do instinto animal, de cio, a exortação de “com elegância beber-lhe o espírito” instaura o traço humano no ato lúdico.
passionais
Líria Porto
para se dançar um tango
é preciso mais que técnica
música luzes
há que se rastrear o cheiro o olhar
a pele as pernas a sombra do parceiro
e com elegância beber-lhe o espírito
No
terceiro poema, essa presença masculina entra colateralmente como
comparação: o tema do texto é o raio de sol. Mas quem chega ao final da
leitura, aos três últimos versos, não tem tanta certeza de que o tema é
esse. Volta ao princípio do poema – mesmo o título com seu significado
de “desviar-se do bom caminho” já parece ter um novo valor – e refaz a
leitura de um outro modo, desconfiando de que, na verdade, o sol entra
no tema apenas de penetra.
descarrilamento
Líria Porto
um raio de sol
esquiva-se entre as galhas da mangueira
engraça-se pelas folhas novas
tenras cor-de-rosa
encabula-se esconde-se
depois reaparece
feliz aprumado
igual homem casado
ao chegar em casa
após o serão
Impossível
não se encontrar em Líria Porto o tema constante em todos os poetas,
que se supõe sobe à garganta e vaza pelos dedos, sem poder ser evitado: o
discorrer sobre o próprio ato poético. E esse ato é dor, é lavra
penosa.
Líria Porto
escrevo
depois faço a poda
só sobram
os ossos descarnados
do poema
dor
Líria Porto
escrevo num soco
única palavra
tem ela três letras
depois da pancada
e esse grunhido
não faz um poema
é ele o gemido
da minha pena
poeminha
um barquinho na enxurrada
e a poesia
nada
O domínio da linguagem, do fazer lírico, como se constatou, é marcante na criação de Líria Porto e os efeitos conseguidos são poesia viva.
estrelada
Líria Porto
a noite mastiga o escuro
e cospe as sementes
o passarinho
Líria Porto
não cobra um tostão
pela serenata
de todas as manhãs
definitivo
Líria Porto
foi triste
quanto partiste
levaste a estrada.
*Não me deixes!
Gonçalves Dias
Debruçada nas águas dum regato
A flor dizia em vão
À corrente, onde bela se mirava:
"Ai, não me deixes, não!
"Comigo fica ou leva-me contigo
Dos mares à amplidão;
Límpido ou turvo, te amarei constante;
Mas não me deixes, não!"
E a corrente passava; novas águas
Após as outras vão;
E a flor sempre a dizer curva na fonte:
"Ai, não me deixes, não!"
E das águas que fogem incessantes
À eterna sucessão
Dizia sempre a flor, e sempre embalde:
"Ai, não me deixes, não!"
Por fim desfalecida e a cor murchada,
Quase a lamber o chão,
Buscava inda a corrente por dizer-lhe
Que a não deixasse, não.
A corrente impiedosa a flor enleia,
Leva-a do seu torrão;
A afundar-se dizia a pobrezinha:
"Não me deixaste, não!"
Você está convidada(o) a meus blogues Poema Vivo (link) e Conto-gotas (link).
4 comentários:
Muito bom encontrar a poesia de Líria Porto em seu blog, Eliane. Convivo com as letras de Líria já há algum tempo nos grupos virtuais de poesia e sou sua admiradora. Adquiri o livro Borboletas Desfolhadas, quando ele foi lançado pela autora, e o recomendo a todos.
Líria também está encantando com sua poesia lá no Scenarium.
Parabéns pela bela escolha da postagem!
Beijos,
Marise
à procura de uma informação no google, acabei por chegar neste teu espaço e tive a alegre surpresa de encontrar meus versos comentados por ti. obrigada! gostei imensamente de estar aqui e do teu trabalho.
só um porém - mesmo meu nome escrevo com minúsculas, não conseguiria escrever nem deus de forma diferente.
besos
líria
ah, esqueci-me de dizer - tenho muito orgulho em ser uma das " "escritoras suicidas" - http://www.escritorassuicidas.com.br/liria_porto.htm e ter poemas publicados no "penetra surdamente no reino das palavras" - http://consideracaodopoema.blogspot.com.br/search/label/L%C3%ADria%20Porto, ao lado do que há de melhor na poesia contemporânea.
besos
cara professora
gostaria imensamente de te enviar meu livro juvenil - garimpo - que acaba de ser publicado pela editora lê - envia-me teu endereço, por favor, para meu e-mail liria.uai@gmail.com
grande abraço!
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