Novamente, neste segmento, irei reunir duas seções, como indica o título acima. Dessa vez, aproveitando o comentário interessante de Lídia Bulcão (será apresentada na próxima postagem: Literatura, já 8) de que o espelho é um tema que atrai as (os) poetas. Mas o tratamento dado a ele, espelho, é bastante variado. De simples referente, objeto do mundo real, transforma-se, além de sua mágica de reproduzir quem se olha, pela mágica da poesia. Começamos o estudo por Cecília Meireles.
Mulher ao espelho
Cecília Meireles
Hoje que seja esta ou aquela,
pouco me importa.
Quero apenas parecer bela,
pois, seja qual for, estou morta.
Já fui loura, já fui morena,
já fui Margarida e Beatriz.
Já fui Maria e Madalena.
Só não pude ser como quis.
Que mal faz, esta cor fingida
do meu cabelo, e do meu rosto,
se tudo é tinta: o mundo, a vida,
o contentamento, o desgosto?
Por fora, serei como queira
a moda, que me vai matando.
Que me levem pele e caveira
ao nada, não me importa quando.
Mas quem viu, tão dilacerados,
olhos, braços e sonhos seus
e morreu pelos seus pecados,
falará com Deus.
Falará, coberta de luzes,
do alto penteado ao rubro artelho.
Porque uns expiram sobre cruzes,
outros, buscando-se no espelho.
A segunda estrofe do poema está carregada de ambiguidade. A primeira interpretação, pode revelar uma mulher que, levada pelas exigências de um mundo (“Por fora, serei como queira/a moda, que me vai matando.” ou “Quero apenas parecer bela,”), vai se metamorfoseando (“...que seja esta ou aquela,...”), oprimida: “Só não pude ser como quis.” Observemos que os versos “... pois, seja qual for, estou morta.”; “... e morreu pelos seus pecados,” e “Porque uns expiram sobre cruzes,/outros, buscando-se no espelho.” revelam uma pessoa infeliz nessa busca exterior resumida em “espelho”.
Uma outra leitura daquela mesma estrofe, pode entendê-la como a fala de uma mulher não individualizada, não personalizada, tanto que viveu vidas muito diferentes. Observe-se a oposição cultural entre “Maria” e “Madalena”. Mas esse discurso, ao contrário, não quer criar um ser arquetípico “Mulher”, como se poderia supor. Demonstra que a variedade de aspectos de todas as mulheres citadas ali reforça a nova postura dos movimentos feministas que afirmam a pluralidade da mulher e negam velhas fórmulas como “alma feminina”, “essência feminina”. O ser humano é plural, já foi dito em outra postagem. Apontam, com mais força ainda, a opressão. Em qualquer época, a mulher não pode ser como quer e é sempre levada a “expirar diante de um espelho”, como se vê com a enxurrada de operações plásticas do mundo moderno.
Embora o poema acima mostre um eu que olha para o espelho para enxergar-se fisicamente, os outros poemas de Cecília, a seguir, mostram, na verdade, um uso diferente do tema do espelho e que é quase sempre constante.
Uma outra leitura daquela mesma estrofe, pode entendê-la como a fala de uma mulher não individualizada, não personalizada, tanto que viveu vidas muito diferentes. Observe-se a oposição cultural entre “Maria” e “Madalena”. Mas esse discurso, ao contrário, não quer criar um ser arquetípico “Mulher”, como se poderia supor. Demonstra que a variedade de aspectos de todas as mulheres citadas ali reforça a nova postura dos movimentos feministas que afirmam a pluralidade da mulher e negam velhas fórmulas como “alma feminina”, “essência feminina”. O ser humano é plural, já foi dito em outra postagem. Apontam, com mais força ainda, a opressão. Em qualquer época, a mulher não pode ser como quer e é sempre levada a “expirar diante de um espelho”, como se vê com a enxurrada de operações plásticas do mundo moderno.
Embora o poema acima mostre um eu que olha para o espelho para enxergar-se fisicamente, os outros poemas de Cecília, a seguir, mostram, na verdade, um uso diferente do tema do espelho e que é quase sempre constante.
Epigrama do Espelho Infiel
A João de Castro Osório
Cecília Meireles
Entre o desenho do meu rosto
e o seu reflexo,
meu sonho agoniza, perplexo.
Ah! pobres linhas do meu rosto,
desmanchadas do lado oposto,
e sem nexo!
E a lágrima do seu desgosto
sumida no espelho convexo!
No poema acima, como costuma ocorrer em autorias diversas, o espelho é apenas uma dissimulação de uma análise subjetiva, de um eu que se autoinvestiga.
Retrato
Cecília Meireles
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos, sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
– Em que espelho ficou perdida
a minha face?
De início, devemos ampliar o significado da palavra “retrato” do título. Pode-se referir realmente a uma fotografia, mas pode ser também apenas o representar das características de alguém. Como se vê, mais do que uma figura exterior, o que se retrata é toda uma mudança ocorrida por um sofrimento de vida – “... eu não tinha este coração/que nem se mostra.” –, revelados elementos inapreensíveis pelo olhar. Finalmente, “o espelho” da última estrofe esvazia-se de sua condição de objeto físico, porque se lhe agrega, nitidamente, a noção de “tempo”.
Mas, como comprovam os textos seguintes, de autoria masculina, não são apenas as mulheres que se olham no espelho. Conhecidíssimo, o texto a seguir, nega a eficiência do espelho enquanto objeto revelador, apontando uma dicotomia entre o fora e o mais profundo do eu poético.
Mas, como comprovam os textos seguintes, de autoria masculina, não são apenas as mulheres que se olham no espelho. Conhecidíssimo, o texto a seguir, nega a eficiência do espelho enquanto objeto revelador, apontando uma dicotomia entre o fora e o mais profundo do eu poético.
Versos de Natal
Manuel Bandeira
Espelho, amigo verdadeiro,
Tu refletes as minhas rugas,
Os meus cabelos brancos,
Os meus olhos míopes e cansados.
Espelho, amigo verdadeiro,
Mestre do realismo exato e minucioso,
Obrigado, obrigado!
Mas se fosses mágico,
Penetrarias até o fundo desse homem triste,
Descobririas o menino que sustenta esse homem,
O menino que não quer morrer,
Que não morrerá senão comigo,
O menino que todos os anos na véspera do Natal
Pensa ainda em pôr os seus sapatinhos atrás da porta.
O próximo texto traz um novo ângulo ao tema. Aqui, esse eu, ao olhar a si no espelho, descobre o pai – observe-se a ousada, e de efeito surpreendente, construção de “Como pude ficarmos assim?” – e essa duplicação termina por ser uma revelação mais nítida de si mesmo. Permite, ainda, ao leitor, uma inferência da condição de todo ser humano.
Espelho
Mário Quintana
Por acaso, surpreendo-me no espelho: quem é esse
Que me olha e é tão mais velho do que eu?
Porém, seu rosto... é cada vez menos estranho...
Meu Deus, meu Deus... Parece
Meu velho pai - que já morreu!
Como pude ficarmos assim?
Nosso olhar – duro – interroga:
"O que fizeste de mim?!
Eu, Pai?! Tu é que me invadiste,
Lentamente, ruga a ruga... Que importa! Eu sou, ainda,
Aquele mesmo menino teimoso de sempre
E os teus planos enfim lá se foram por terra.
Mas sei que vi, um dia – a longa, a inútil guerra! –
Vi sorrir, nesses cansados olhos, um orgulho triste...
O último texto é de um escritor surrealista. A estética desse movimento, que atingiu todas as artes, pretendia utilizar imagens características do inconsciente, do sonho, utilizando um discurso não racional. Para um aprofundamento da definição, remeto ao E-Dicionário de Termos Literários, como já fiz em outras postagens (clique aqui). Cria-se uma atmosfera de mundos paralelos: “Um plano superpõe-se a outro plano./O mundo se balança entre dois olhos,”. A pergunta “Mas quem me vê? Eu mesmo me verei?” instaura a possibilidade de um outro alguém, de um outro mundo, ser aquele que olha. E ainda “Correspondo a um arquétipo ideal.” traz para o texto o pensamento platônico, reafirmando a interpretação. Mas a revelação sutil e poética está naquele “Signo de futura realidade sou.”, lembrando que a palavra “signo”, lapidada de todas as diversas interpretações da história da Semiótica, é, em última análise, o uso de uma coisa presente para indicar outra coisa ausente, reafirmando a idéia de dois mundos que se tangenciam, ligados por esse signo, por esse eu lírico. Isso tudo está implícito na idéia de espelho do título que, levada por “ondas de terror”, uma manopla parte.
O Espelho
Murilo Mendes
O céu investe contra o outro céu.
É terrível pensar que a morte está
Não apenas no fim, mas no princípio
Dos elementos vivos da criação.
Um plano superpõe-se a outro plano.
O mundo se balança entre dois olhos,
Ondas de terror que vão e voltam,
Luz amarga filtrando destes cílios.
Mas quem me vê? Eu mesmo me verei?
Correspondo a um arquétipo ideal.
Signo de futura realidade sou.
A manopla levanta-se pesada,
Atacando a armadura inviolável:
Partiu-se o vidro, incendiou-se o céu.
Como o tema não se esgota aqui, a seção Literatura já, 8 irá trazer para o presente, ainda, o fascínio do espelho.
2 comentários:
Gosto muito de ler teus estudos, dá nova compreensão ao poema, que aos meus olhos ainda fica melhor!
beijo
Olá, Eliane!
Perdoe a demora. Trabalho, mãe doente, cuidar de neta, afazeres domésticos, e alguns penduricalhos aos quais a rotina me ata acabam me transformando na atrasadinha da rede.
Fiquei feliz com a sua visita e o seu comentário. E gostei muito deste blogue. Vou segui-la por aqui também para poder ler com calma, no google reader, todas as suas publicações.
Espelhos exercem mesmo um fascínio avassalador, especialmente sobre os poetas. E sua análise,... brilhante.
Não conhecia o poema do Murilo Mendes. O do Quintana sempre foi um dos meus preferidos. Seu espelho me diz muito...
Bjs, novamente, obrigada! E inté!
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