Na atual postagem, o tema recorrente é a velhice. Os textos escolhidos são de poetas contemporâneas, com as quais já trabalhei. E, de início, pelas pistas que cada um fornece, se podem reconhecer as diferentes fases da vida em que cada ser poético está, o que lhes propicia uma avaliação divergente diante desse momento da vida.
Poema I: Martha Medeiros
envelhecer, quem sabe
não seja assim tão desastroso
me interessa perder esta ansiedade
me atrai ser atraente mais tarde
um pouco mais de idade, que importa
envelhecer, quem sabe
não seja assim tão só
O eu lírico do texto de Martha Medeiros não está na velhice ainda – “envelhecer, quem sabe...” – e, por isso, mantém uma expectativa positiva, ou, pelo menos, o benefício da dúvida, embora o leitor conclua que o conceito que faz daquela fase, recebido do senso comum, seja preocupante: “assim tão desastroso” ou “assim tão só”. Sua visão, então, se faz sobre um período que não é o seu.
Mas, se analisarmos o “um pouco mais de idade”, veremos que a concessão feita não vai muito longe, porque estabelece limites. Outro fator interessante a ser apreciado é o termo “envelhecer”, que, quer se queira ou não, é o início de um processo, não o processo completo. Ainda aqui o leitor pode detetar uma demarcação nessa expectativa positiva, como foi salientado anteriormente.
Poema II: Bicho-de-sete-cabeças
Astrid Cabral
À medida que envelheço
as sete cabeças do bicho
corto. Enfim o reconheço
íntimo de mim, meu próximo.
À medida que envelheço
conquisto-lhe o segredo.
Vejo a morte iniciação
à viagem pelo avesso.
À medida que envelheço
digo: o bicho é meu amigo.
Não, não há porque maldar
envenenando o sossego.
À medida que envelheço
sinto-me remanescente
num deserto onde tropeço
por entre sombras de ausentes.
À medida que envelheço
aprendo a perder o medo.
Todo bicho fica meigo.
É só botar no colo.
O segundo eu enunciador parece já estar no meio do estado enfocado – “À medida que envelheço” –, embora haja, ainda, a ideia de “processo” – o termo significa sucessivos estados de mudança –, o que revela uma situação não definitiva.
O “tão desastroso” do poema de Martha, também sob a opinião do senso comum, vem traduzido, em Astrid, na metáfora do “bicho” e suas “sete cabeças”. Esse eu textual, entretanto, ainda, mantém uma visão confiante nessa fase da vida: “aprendo a perder o medo”. Um exame mais cuidadoso, porém, identifica que esse sujeito, apesar do “À medida que envelheço”, continua a manter, como o do texto que o antecede, um distanciamento da velhice, vendo-a, por intermédio de sua metáfora, como “um outro” ainda apartado de si: “Enfim o reconheço/íntimo de mim, meu próximo”; “o bicho é meu amigo”; “Todo bicho fica meigo./É só botar no colo.” Pode-se supor que a visão suavizada possa vir, exatamente, desse sentimento de alteridade.
Poema III: Pedido de adoção
Adélia Prado
Estou com muita saudade
de ter mãe,
pele vincada,
cabelos para trás,
os dedos cheios de nós,
tão velha,
quase podendo ser a mãe de Deus
– não fosse tão pecadora.
Mas esta velha sou eu,
minha mãe morreu moça,
os olhos cheios de brilho,
a cara cheia de susto.
Ó meu Deus, pensava
que só de crianças se falava:
as órfãs.
O último eu poético já assume inteiramente a velhice. Aqui não há processo, mas o ciclo completado. A tal ponto, que a ideia de uma mãe idosa se impõe ao reconhecer sua própria figura. Diante do “Mas esta velha sou eu,/minha mãe morreu moça,”, somos, imediatamente, remetidos para os versos de Helena Kolody (ver postagem minha anterior, aqui): A morte desgoverna a vida./Hoje sou mais velha/que meu pai. E a sensação de abandono da velhice – aqui a gente reconhece o “assim tão só” do primeiro poema – vem envolta na “muita saudade/ de ter mãe”, na orfandade, clara no último verso. O sentimento do derradeiro texto é bem diverso dos anteriores e o tema da velhice é inteiramente o tema desse eu lírico. Para o sujeito do poema de Adélia Prado o “bicho” não é amigo, nem ficou meigo. Quem necessita de colo, como as crianças – que é da mãe, tão perfeita para essa função? – é aquela que se reconhece “tão velha”, atadas, deste modo, em sua necessidade de proteção, as duas pontas da vida.
4 comentários:
O seu olhar da velhice através dos autores escolhidos mostra-se bem resolvido, pq assim é quando estamos de bem com vida! Mil beijos
Ah escolha fabulosa, pq as 3 citadas são magníficas.
Bem interessantes tuas colocações.
Ao direcionarmos o olhar para um determinado aspecto ou estágio da vida, percebemos com muito mais clareza o que antes não havíamos percebido. Parece que quando estamos vivenciando algo, torna-se mais difícil o ato de descrevê-lo,pq não há um distanciamento do fato. Fala-se com uma certa clareza
sobre o que passou e sobre o devir
idealiza-se, devaneia-se...!?
Amiga Eliane!
É verdade querida, distanciamo-nos, lamentavelmente.
Eu sempre comento a quem me visita e pouco mais.
O tempo não me chega amiga, muito menos nestes últimos dias com o meu único filho em casa de férias.
Veio para o seu aniversário, festejado HOJE mesmo, mas já vai dia 18 :(
Há 14 anos que não passávamos este dia juntos, acreditas???
Há mais de dois anos que não nos abraçávamos, não nos víamos olhos nos olhos, só no Skype.
Dá para sentir a nossa felicidade?!!!!
Amiga, o meu Pedro fez-se agora mesmo teu seguidor.
Pedro Martins Ferreira.
Ele quase não comenta.
O seu pouco tempo disponível passa-o a tocar viola ou com a companheira :)))))
Mas é mesmo pouco. A sério.
Trabalha no aeroporto de Zurique e os turnos dele são diabólicos.
Acabo por não comentar o teu post, desculpa.
Volto logo, mal possa.
Vai aparecendo, por favor...
Quem se quer bem ... sempre se encontra.
Beijos
Ná
Para mim que estou começando a entender essa ideia de envelhecer, é um bicho de sete cabeças. Como sei que gosta muito da Cecília, cito-a aqui:
Eu não tinha esse rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem esse lábio amargo.
Abraços!
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