Volte à postagem anterior e leia o soneto "Musa impassível". Resolvi retomar o assunto do segmento anterior para fazer uns esclarecimentos teóricos que considero importantes e que foram apenas mencionados ali. Quero explicar exatamente o “impassível”, anexado à “Musa”, no soneto de Francisca Júlia e o que significa para o Parnasianismo, o estilo de época da escritora.
Primeiro é necessário esclarecer o termo “Musa”: remete a uma das nove divindades da mitologia clássica grega e latina, filhas de Zeus e Mnemósine (deusa da memória), que protegiam as letras, as artes liberais e as ciências.
A presença da musa no poema indica sempre a alusão à inspiração dos poetas, daquele ser pretensamente exterior, que dominaria a criação poética. Claro que esse é apenas um efeito literário.
No soneto citado, ao descrever todas as características de “sua” musa, ao desejá-la impassível, ou seja, imune às paixões e aos outros sentimentos daí advindos, o sujeito lírico fala de si mesmo, de sua maneira de pensar e agir diante do fato poético: contenção da emoção, absoluto domínio de si diante da criação, um trabalho incessante na busca da perfeição textual, tentativa de se evitar o subjetivismo, isto é, a marca forte de seu eu, o que era uma busca incessante do Parnasianismo. Enfim, sufocamento da inspiração pura e simples em proveito do trabalho intelectual. A própria assunção dessa personagem mitológica, que remete à inspiração, é um paradoxo, portanto.
Mas, à luz da Teoria do discurso, vemos que, como todos os outros poetas do parnasianismo, Francisca Júlia esteve longe dessa impassibilidade. Dominique Maingueneau em seu Termos-chave da análise do discurso (1.ª reimpressão, Belo Horizonte: UFMG, 2000), no verbete “subjetividade” diz que “é praticamente impossível encontrar um texto que não deixe aflorar a presença do sujeito falante” (p. 133). Saliente-se que, no caso, ele se refere a qualquer texto, não só ao poético. Começa-se a descobrir que o eu não aparece apenas explicitamente no texto, nos pronomes de primeira pessoa, nos adjetivos que traduzem seus estados de alma, no sentimentalismo, como faziam, por exemplo, os românticos.
Maingueneau vai estudar “as marcas” dessa subjetividade, quer dizer, desse eu que, sem querer, acaba se revelando. Por exemplo: se num texto aparece a expressão “casa grande”, temos aí uma propriedade de um objeto. Mas se encontramos “casa magnífica”, temos, mais do que uma propriedade do objeto, mas um julgamento de valor, uma reação emocional do enunciador, que podia estar pretendendo fazer uma descrição objetiva e contida. Sem querer, há a clara presença desse eu.
O estudioso faz uma análise teórico minuciosa, mas aqui citarei apenas o que são as “tomadas de posição” do sujeito lírico do soneto em questão, mostrando que ele não é desapaixonado nem impassível. Parecendo falar de um elemento exterior a si, a criação literária, e exortando à contenção emocional, o que esse ser enunciador faz é jogar-se inteiramente em suas escolhas linguísticas. Aliás, a própria noção de “escolha” – preferência, predileção – já está a assinalar a presença de um eu arbitrário. Ao empregar determinado verbo ou adjetivo, o sujeito enunciativo mostra inteiramente suas preferências ou avaliações sobre o que fala.
Ele nega qualquer gesto de dor ou lágrima para seu eu, que ele nomeia como musa, tentando evitar o sentimentalismo. Mas ao empregar o verbo “afeie” para semblante, em lugar, por exemplo, de “modifique”, a emoção já guiou sua opção.
Prosseguindo, esse enunciador deseja uma série de procedimentos poéticos que “cante aos ouvidos d’alma”. Bem, a escolha de todos esses elementos, desde o próprio verbo cantar, é de uma subjetividade extrema. Imaginar-se ouvidos d’alma não tem nada de objetivo ou impassível. Observemos as expressões adjetivas de “sincero luto”, “cândido semblante”, “sobrecenho austero”, que, somadas à atribuição “d’ouro” para hemistíquio – metade de um verso – são pessoais, são afetivas e, nesse caso, completamente emocionais.
A última estrofe termina por completar o derramamento sentimental naqueles “bárbaros ruídos”. Se o enunciador poderia escolher o adjetivo sinônimo “rude”, que já seria avaliativo, e portanto subjetivo, imagine-se a opção por “bárbaros”, que, além de ter o mesmo significado, ainda agrega uma séria de dados culturais e históricos (aconselho a consulta a um bom dicionário e a leitura de todo o verbete).
A estrofe, a partir daí, se fecha em duas construções que podem ser vistas, no mínimo, como duas comparações para “versos”: “áspero rumor de um calhau que se quebra” e “surdo rumor de mármores partidos”. Na primeira, o leitor se depara com uma sinestesia, que é a construção de uma expressão que apela a dois sentidos diferentes: “áspero” remete ao tato e “rumor” à audição.
Ora, utilizar figuras de linguagem é abrir mão da linguagem objetiva de um discurso que se quer impassível, em prol da via poética, que é polissêmica e aponta vários caminhos, não só para o leitor, como para o próprio sujeito enunciador. Quem fala através da linguagem figurada quer tudo, menos fugir à emoção.
Primeiro é necessário esclarecer o termo “Musa”: remete a uma das nove divindades da mitologia clássica grega e latina, filhas de Zeus e Mnemósine (deusa da memória), que protegiam as letras, as artes liberais e as ciências.
A presença da musa no poema indica sempre a alusão à inspiração dos poetas, daquele ser pretensamente exterior, que dominaria a criação poética. Claro que esse é apenas um efeito literário.
No soneto citado, ao descrever todas as características de “sua” musa, ao desejá-la impassível, ou seja, imune às paixões e aos outros sentimentos daí advindos, o sujeito lírico fala de si mesmo, de sua maneira de pensar e agir diante do fato poético: contenção da emoção, absoluto domínio de si diante da criação, um trabalho incessante na busca da perfeição textual, tentativa de se evitar o subjetivismo, isto é, a marca forte de seu eu, o que era uma busca incessante do Parnasianismo. Enfim, sufocamento da inspiração pura e simples em proveito do trabalho intelectual. A própria assunção dessa personagem mitológica, que remete à inspiração, é um paradoxo, portanto.
Mas, à luz da Teoria do discurso, vemos que, como todos os outros poetas do parnasianismo, Francisca Júlia esteve longe dessa impassibilidade. Dominique Maingueneau em seu Termos-chave da análise do discurso (1.ª reimpressão, Belo Horizonte: UFMG, 2000), no verbete “subjetividade” diz que “é praticamente impossível encontrar um texto que não deixe aflorar a presença do sujeito falante” (p. 133). Saliente-se que, no caso, ele se refere a qualquer texto, não só ao poético. Começa-se a descobrir que o eu não aparece apenas explicitamente no texto, nos pronomes de primeira pessoa, nos adjetivos que traduzem seus estados de alma, no sentimentalismo, como faziam, por exemplo, os românticos.
Maingueneau vai estudar “as marcas” dessa subjetividade, quer dizer, desse eu que, sem querer, acaba se revelando. Por exemplo: se num texto aparece a expressão “casa grande”, temos aí uma propriedade de um objeto. Mas se encontramos “casa magnífica”, temos, mais do que uma propriedade do objeto, mas um julgamento de valor, uma reação emocional do enunciador, que podia estar pretendendo fazer uma descrição objetiva e contida. Sem querer, há a clara presença desse eu.
O estudioso faz uma análise teórico minuciosa, mas aqui citarei apenas o que são as “tomadas de posição” do sujeito lírico do soneto em questão, mostrando que ele não é desapaixonado nem impassível. Parecendo falar de um elemento exterior a si, a criação literária, e exortando à contenção emocional, o que esse ser enunciador faz é jogar-se inteiramente em suas escolhas linguísticas. Aliás, a própria noção de “escolha” – preferência, predileção – já está a assinalar a presença de um eu arbitrário. Ao empregar determinado verbo ou adjetivo, o sujeito enunciativo mostra inteiramente suas preferências ou avaliações sobre o que fala.
Ele nega qualquer gesto de dor ou lágrima para seu eu, que ele nomeia como musa, tentando evitar o sentimentalismo. Mas ao empregar o verbo “afeie” para semblante, em lugar, por exemplo, de “modifique”, a emoção já guiou sua opção.
Prosseguindo, esse enunciador deseja uma série de procedimentos poéticos que “cante aos ouvidos d’alma”. Bem, a escolha de todos esses elementos, desde o próprio verbo cantar, é de uma subjetividade extrema. Imaginar-se ouvidos d’alma não tem nada de objetivo ou impassível. Observemos as expressões adjetivas de “sincero luto”, “cândido semblante”, “sobrecenho austero”, que, somadas à atribuição “d’ouro” para hemistíquio – metade de um verso – são pessoais, são afetivas e, nesse caso, completamente emocionais.
A última estrofe termina por completar o derramamento sentimental naqueles “bárbaros ruídos”. Se o enunciador poderia escolher o adjetivo sinônimo “rude”, que já seria avaliativo, e portanto subjetivo, imagine-se a opção por “bárbaros”, que, além de ter o mesmo significado, ainda agrega uma séria de dados culturais e históricos (aconselho a consulta a um bom dicionário e a leitura de todo o verbete).
A estrofe, a partir daí, se fecha em duas construções que podem ser vistas, no mínimo, como duas comparações para “versos”: “áspero rumor de um calhau que se quebra” e “surdo rumor de mármores partidos”. Na primeira, o leitor se depara com uma sinestesia, que é a construção de uma expressão que apela a dois sentidos diferentes: “áspero” remete ao tato e “rumor” à audição.
Ora, utilizar figuras de linguagem é abrir mão da linguagem objetiva de um discurso que se quer impassível, em prol da via poética, que é polissêmica e aponta vários caminhos, não só para o leitor, como para o próprio sujeito enunciador. Quem fala através da linguagem figurada quer tudo, menos fugir à emoção.
Um comentário:
Eliane, penso que ainda que se marque com pedrinhas um caminho, será praticamente impossível ignorar a natureza que se derrama as suas margens. Sem ajuda, provavelmente, não se conseguirá voltar por ele. Mas, aqui e ali, estarão uma árvore, uma flor, um cacto, uma montanha, um rio, - um dado qualquer que se marque por si mesmo no caminho interior, sem a necessidade de pedrinhas...
Como se faz para negar totalmente belezas e asperezas perfeitamente identificadas com o que vai na alma?
Nunca vou acreditar que seja possível anular-se totalmente, para estar sob uma imposição. Especialmente, quando trata-se de poesia. Mais ainda: quando quem a produz é uma mulher tentando, àquele tempo, subir à tona e navegar num mar de poemas (só aceitos porque e se) escritos por homens.
E quando se faz uma leitura sem o "rótulo" do parnasianismo, (embora levando-o em consideração), cresce em importãncia a poesia de Francisca, especialmente porque muitas vezes ela abre uma fresta através da qual quase podemos ver com nitidez a posição da mulher, não apenas na condição de escritora, poeta, mas como um todo, na sociedade da época. Ainda pouco mais que nitrato de pó de merda.
No princípio era o verbo? No princípio, agora, e sempre a escolha de palavras poderá revelar a alma, o deus que habita o Homem.
E, por favor, continue fazendo um "abatimento" nas minhas tortas leituras.
Bjs, Eliane, e inté!
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