O direito à interpretação
Na longa prática do ensino de literatura, sempre surgiu o comentário dos alunos de que cada um tem direito à sua própria interpretação de um texto. A respeito disso eu chamava a atenção de que o direito à interpretação tem como primeira norma a de se ler o texto e observar seus detalhes e revelações. E, ao ampliar minha resposta, acabava englobando também um outro comentário: "o que o autor quis dizer." Para se interpretar era necessário ter em mira a certeza de que ele " não quis dizer", mas disse: ali estava o texto. Esse dizer, isso sim, deveria ser ampliado para "dizer-se", o que significava três coisas principais:
1. O que o autor disse, aquilo que estava escrito em seu texto inegavelmente;
2. O que o autor não disse explicitamente, mas acabou revelando em seus silêncios (hoje em dia a análise do discurso estuda isso muito bem. Veja o que foi dito sobre o poema de Adélia Prado, em relação ao Tempo 2, subentendido, em PALAVRAS SOBRE PALAVRAS 1), o que acaba entrando, de certa forma, no item 1, acima;
3. O que ele não pretendeu dizer ou não imaginou dizer, mas acabou revelando mesmo não intencionalmente, pois todos nós temos coisas guardadas no mais recôndito de nosso ser e que transbordam, às vezes, queiramos ou não.
Mas sempre chamei a atenção do analista para que tomasse cuidado com esse item 3 e não entrasse de novo na tal liberdade de interpretação. Cada afirmativa tem de ser conferida e vista se relevante para o texto.
Com o tempo, acabei levando a eles, uma outra estratégia: mesmo que façamos apenas a análise de um texto específico, devemos confrontar vários textos daquele autor como margem de segurança. Na maioria das vezes, uma suspeita, por assim dizer, que se levanta em um primeiro momento, se correta, acaba se confirmando claramente nos outros.
Abaixo será analisado um texto da poetisa Adalgisa Néry (1905-1980)
Breve biografia: Além de produzir poesia e ficção, foi jornalista. Sua atuação política, entretanto, foi um pouco paradoxal: colabou com o departamento de censura do Estado Novo (DIP), no Governo de Getúlio Vargas, mas foi eleita pelo PSB, mais tarde. Para maiores detalhes de sua vida polêmica, clique 1,2,3.
A análise a seguir será sobre o "Poema natural", da autora, porém dois outros serão usados também para fechar o estudo. Irei remetendo aos dois, transcritos logo abaixo.
Na longa prática do ensino de literatura, sempre surgiu o comentário dos alunos de que cada um tem direito à sua própria interpretação de um texto. A respeito disso eu chamava a atenção de que o direito à interpretação tem como primeira norma a de se ler o texto e observar seus detalhes e revelações. E, ao ampliar minha resposta, acabava englobando também um outro comentário: "o que o autor quis dizer." Para se interpretar era necessário ter em mira a certeza de que ele " não quis dizer", mas disse: ali estava o texto. Esse dizer, isso sim, deveria ser ampliado para "dizer-se", o que significava três coisas principais:
1. O que o autor disse, aquilo que estava escrito em seu texto inegavelmente;
2. O que o autor não disse explicitamente, mas acabou revelando em seus silêncios (hoje em dia a análise do discurso estuda isso muito bem. Veja o que foi dito sobre o poema de Adélia Prado, em relação ao Tempo 2, subentendido, em PALAVRAS SOBRE PALAVRAS 1), o que acaba entrando, de certa forma, no item 1, acima;
3. O que ele não pretendeu dizer ou não imaginou dizer, mas acabou revelando mesmo não intencionalmente, pois todos nós temos coisas guardadas no mais recôndito de nosso ser e que transbordam, às vezes, queiramos ou não.
Mas sempre chamei a atenção do analista para que tomasse cuidado com esse item 3 e não entrasse de novo na tal liberdade de interpretação. Cada afirmativa tem de ser conferida e vista se relevante para o texto.
Com o tempo, acabei levando a eles, uma outra estratégia: mesmo que façamos apenas a análise de um texto específico, devemos confrontar vários textos daquele autor como margem de segurança. Na maioria das vezes, uma suspeita, por assim dizer, que se levanta em um primeiro momento, se correta, acaba se confirmando claramente nos outros.
Abaixo será analisado um texto da poetisa Adalgisa Néry (1905-1980)
Breve biografia: Além de produzir poesia e ficção, foi jornalista. Sua atuação política, entretanto, foi um pouco paradoxal: colabou com o departamento de censura do Estado Novo (DIP), no Governo de Getúlio Vargas, mas foi eleita pelo PSB, mais tarde. Para maiores detalhes de sua vida polêmica, clique 1,2,3.
A análise a seguir será sobre o "Poema natural", da autora, porém dois outros serão usados também para fechar o estudo. Irei remetendo aos dois, transcritos logo abaixo.
O texto literário: Poema natural
Adalgisa Néry
Poema natural
Abro os olhos, não vi nada
Fecho os olhos, já vi tudo.
O meu mundo é muito grande
E tudo que penso acontece.
Aquela nuvem lá em cima?
Eu estou lá,
Ela sou eu.
Ontem com aquele calor
Eu subi, me condensei
E, se o calor aumentar, choverá e cairei.
Abro os olhos, vejo um mar,
Fecho os olhos e já sei.
Aquela alga boiando, à procura de uma pedra?
Eu estou lá,
Ela sou eu.
Cansei do fundo do mar, subi, me desamparei.
Quando a maré baixar, na areia secarei,
Mais tarde em pó tomarei.
Abro os olhos novamente
E vejo a grande montanha,
Fecho os olhos e comento:
Aquela pedra dormindo, parada dentro do tempo,
Recebendo sol e chuva, desmanchando-se ao vento?
Eu estou lá,
Ela sou eu.
(Poemas - 1937)
Análise do texto
Eliane F.C.Lima
Podem-se fazer duas leituras, as duas defensáveis, e que não chegam a se excluir inteiramente. Se excludentes, esse seria um caso forte para se refletir e eliminar uma das possibilidades como aceitável, ou as duas.
Primeira visão: Entender-se que o eu poético é a voz da natureza: esse "eu" que fala, no texto, diz que é a nuvem, a chuva, a pedra, dentre outros. Nesse caso, haveria a presença de uma entidade quase alegórica, entendida como "natureza", personificada, e o trecho "tudo que penso acontece" se constituiria em uma metáfora para os processos naturais. Se o leitor fizer tal leitura, enfocando esse modo de ver, terá uma possibilidade relevante. Mas, por outro lado, essa versão tem uma visão bastante empobrecedora do texto poético.
Segunda visão: O eu lírico é uma voz subjetiva que vive uma realidade interna em detrimento de uma externa. Essa realidade do de fora, na verdade, só se concretiza no nível interior: "Abro os olhos, não vi nada/Fecho os olhos, já vi tudo." A continuidade dos versos mostra que o mundo externo se realiza por um impulso subjetivo: "O meu mundo é muito grande/E tudo que penso acontece." Valendo-se das metáforas dos elementos naturais, esse emissor se vai traduzindo em suas várias características, quer seja a fugacidade do condensar-se, do chover e do secar, quer seja a quase perenidade da pedra "parada dentro do tempo." Como se pode avaliar, tal leitura avaliza o texto como uma criação mais rica em significado e até em recursos poéticos.
Vamos fazer uma leitura de outros dois textos e ver como podem ajudar na decisão de escolher a interpretação correta.
Segunda visão: O eu lírico é uma voz subjetiva que vive uma realidade interna em detrimento de uma externa. Essa realidade do de fora, na verdade, só se concretiza no nível interior: "Abro os olhos, não vi nada/Fecho os olhos, já vi tudo." A continuidade dos versos mostra que o mundo externo se realiza por um impulso subjetivo: "O meu mundo é muito grande/E tudo que penso acontece." Valendo-se das metáforas dos elementos naturais, esse emissor se vai traduzindo em suas várias características, quer seja a fugacidade do condensar-se, do chover e do secar, quer seja a quase perenidade da pedra "parada dentro do tempo." Como se pode avaliar, tal leitura avaliza o texto como uma criação mais rica em significado e até em recursos poéticos.
Vamos fazer uma leitura de outros dois textos e ver como podem ajudar na decisão de escolher a interpretação correta.
Cemitério Adalgisa
Adalgisa Néry
Moram em mim
Fundos de mares, estrelas-d'alva,
Ilhas, esqueletos de animais,
Nuvens que não couberam no céu,
Razões mortas, perdões, condenações,
Gestos de amparo incompleto,
O desejo do meu sexo
E a vontade de atingir a perfeição.
Adolescências cortadas, velhices demoradas,
Os braços de Abel e as pernas de Caim.
Sinto que não moro.
Sou morada pelas coisas como a terra das sepulturas
É habitada pelos corpos.
Moram em mim
Gerações, alegrias em embrião,
Vagos pensamentos de perdão.
Como na terra das sepulturas
Mora em mim o fruto podre,
Que a semente fecunda repetindo a vida
No sereno ritmo da Origem.
Vida e morte,
Terra e céu,
Podridão, germinação,
Destruição e criação.
(Poemas - 1937)
Logo de início, o título e os quatro primeiros versos de "Cemitério de Adalgisa" parecem ecoar o primeiro poema e apontar para essa segunda leitura. O poema inteiro vai mais além: esse ser que verbaliza seu discurso lírico reflete em si os acontecimentos do mundo, em termos universais, em termos de humanidade, através dos tempos, em um processo inverso ao primeiro poema, mas que enfatiza esse trânsito contínuo entre o eu e o mundo. Novamente o exterior se subjetiva.
Mistério
Adalgisa Néry
Há vozes dentro da noite que clamam por mim,
Há vozes nas fontes que gritam meu nome.
Minha alma distende seus ouvidos
E minha memória desce aos abismos escuros
Procurando quem chama.
Há vozes que correm nos ventos clamando por
[ mim.
Há vozes debaixo das pedras que gemem meu
[ nome
E eu olho para as árvores tranqüilas
E para as montanhas impassíveis
Procurando quem chama.
Há vozes na boca das rosas cantando meu nome
E as ondas batem nas praias
Deixando exaustas um grito por mim
E meus olhos caem na lembrança do paraíso
Para saber quem chama.
Há vozes nos corpos sem vida,
Há vozes no meu caminhar,
Há vozes no sono de meus filhos
E meu pensamento como um relâmpago risca
O limite da minha existência
Na ânsia de saber quem grita.
(Cantos da Angústia - 1948)
No terceiro texto, "Mistérios" as vozes que gritam, que clamam por esse emissor são, provavelmente, uma terceira versão de todos os elementos resumidos nos versos repetidos "Eu estou lá/Ela sou eu" (texto 1) ou "Sinto que não moro/Sou morada pelas coisas..." (texto 2), as mesmas que já chamavam por ele, por assim dizer, nos dois textos anteriores, suas próprias vozes interiores, e com as quais se identificou: "Há vozes que correm nos ventos clamando por mim./Há vozes debaixo das pedras que gemem meu nome/E eu olho para as árvores tranquilas/E para as montanhas impassíveis...". O ser que chama não é encontrado no fora - o que já havia sido pressentido por ele em "Minha alma distende seus ouvidos/E minha memória desce aos abismos escuros..." -, podendo se entender que o chamado parte de uma camada interna desse mesmo eu, que, aflito, rompe seus próprios limites e se torna um só com a realidade concreta: "E meu pensamento como um relâmpago risca/ O limite da minha existência/Na ânsia de saber quem grita." A segunda interpretação apresenta-se, desse modo, muito mais coerente com a pequena, porém significativa, amostra do universo de Adalgisa Néry.
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