Eliane F.C.Lima
O presente estudo focalizará dois capítulos, se podem ser chamadas assim as diversas partes que compõem o livro Memórias sentimentais de João Miramar de Oswald de Andrade (1890-1954 - clique aqui e veja mais sobre ele), um dos principais articuladores do Movimento Modernista brasileiro e da Semana de Arte Moderna de 1922.
Sobre não usar a pontuação estabelecida pela gramática normativa, o que se generalizou entre os escritores do movimento, nesse romance o escritor dá ainda um show de inovação com a linguagem, indo além do puramente prosaico. Atingindo o ideal literário do modernismo, que era rasgar as fronteiras entre os gêneros literários e estabelecer interseções entre a prosa e a poesia, ele manuseia recursos, com extrema desenvoltura, característicos do texto em versos.
Primeiro texto literário: 3. Gare do infinito
Papai estava doente na cama e vinha um carro e um homem e o carro ficava esperando no jardim.
Levaram-me para uma casa velha que fazia doces e nos mudamos para a sala do quintal onde tinha uma figueira na janela.
No desabar do jantar noturno a voz toda preta de mamãe ia me buscar para a reza do Anjo que carregou meu pai.
Análise do texto
Eliane F.C.Lima
O texto é escrito sob o denominador comum da concisão e dos múltiplos significados: em "uma casa velha que fazia doces", o vocábulo "velha" é um adjetivo que qualifica o substantivo "casa", mas também é, ele mesmo, um substantivo a que se refere a oração adjetiva "fazia doces". Mas o resultado não é apenas o das poucas palavras, porém o efeito lúdico em que insere o leitor: desvenda-lhe a casa e sua dona, colocando esse leitor em um chão instável, que bambeia, ora para um lado, ora para o outro.
É ainda nesse espírito que se cria aquele "onde tinha uma figueira na janela." Cena repleta de plasticidade, aquele que lê é colocado na mesma perspectiva de quem está dentro da sala e olha para fora, limitado pelo enquadramento da janela.
Finalmente, no último parágrafo, fora a força trágica conseguida com o "No desabar do jantar noturno", o sintagma "toda preta", além de caracterizar não só a voz sussurrante e o sofrimento da mãe, estende esse atributo à própria vestimenta de luto usada na época. O escritor usa, com perícia, o recurso da sinédoque: a voz (parte) pela mãe toda.
Se o texto mantém seu substrato narrativo, tem agregado um componente poético inegável.
Segundo texto literário: 8. Fraque do ateu
Saí de Dona Matilde porque marmanjo não podia continuar na classe com meninas.
Matricularam-me na escola modelo das tiras de quadros nas paredes alvas escadarias e um cheiro de limpeza.
Professora magrinha e recreio alegre começou a aula da tarde um bigode de arame espetado no grande professor Seu Carvalho.
No silêncio tic tac da sala de jantar informei mamãe que não havia Deus porque Deus era a natureza.
Nunca mais vi o Seu Carvalho que foi para o Inferno.
Análise do texto
No terceiro parágrafo deve-se observar a utilização de uma série de figuras de estilo que se comprometem entre si e que não podem ser identificadas de forma pura no trecho "começou a aula da tarde um bigode de arame espetado" : é sinédoque - a parte pelo todo? É prosopopéia ou personificação - atribuição de linguagem, sentimentos e ações de seres humanos a seres irracionais ou inanimados? É hipálage - atribuir-se a uma palavra de uma frase o que convém a outra: quem começou a aula foi Seu Carvalho e não o bigode?
Seja lá qual for a figura, ou sejam as três juntas, o escritor se mostra um mestre na arte da caricatura como fixação do perfil da personagem: o bigode é o traço mais marcante no professor.
No parágrafo seguinte, aquele paradoxal "silêncio tic tac", em que se ressalta a solenidade do domínio do som do relógio na sala, a fala do menino remete diretamente ao discurso do professor e à consequência das suas idéias. No "foi para o Inferno" do último parágrafo se superpõem a inocência do menino, a ideologia da mãe, sua religiosidade, e a providência prática que tomou na expulsão do professor do colégio.
Ler o romance em questão é navegar pela prosa-poética de Oswald de Andrade e por seu talento literário.
O presente estudo focalizará dois capítulos, se podem ser chamadas assim as diversas partes que compõem o livro Memórias sentimentais de João Miramar de Oswald de Andrade (1890-1954 - clique aqui e veja mais sobre ele), um dos principais articuladores do Movimento Modernista brasileiro e da Semana de Arte Moderna de 1922.
Sobre não usar a pontuação estabelecida pela gramática normativa, o que se generalizou entre os escritores do movimento, nesse romance o escritor dá ainda um show de inovação com a linguagem, indo além do puramente prosaico. Atingindo o ideal literário do modernismo, que era rasgar as fronteiras entre os gêneros literários e estabelecer interseções entre a prosa e a poesia, ele manuseia recursos, com extrema desenvoltura, característicos do texto em versos.
Primeiro texto literário: 3. Gare do infinito
Papai estava doente na cama e vinha um carro e um homem e o carro ficava esperando no jardim.
Levaram-me para uma casa velha que fazia doces e nos mudamos para a sala do quintal onde tinha uma figueira na janela.
No desabar do jantar noturno a voz toda preta de mamãe ia me buscar para a reza do Anjo que carregou meu pai.
Análise do texto
Eliane F.C.Lima
O texto é escrito sob o denominador comum da concisão e dos múltiplos significados: em "uma casa velha que fazia doces", o vocábulo "velha" é um adjetivo que qualifica o substantivo "casa", mas também é, ele mesmo, um substantivo a que se refere a oração adjetiva "fazia doces". Mas o resultado não é apenas o das poucas palavras, porém o efeito lúdico em que insere o leitor: desvenda-lhe a casa e sua dona, colocando esse leitor em um chão instável, que bambeia, ora para um lado, ora para o outro.
É ainda nesse espírito que se cria aquele "onde tinha uma figueira na janela." Cena repleta de plasticidade, aquele que lê é colocado na mesma perspectiva de quem está dentro da sala e olha para fora, limitado pelo enquadramento da janela.
Finalmente, no último parágrafo, fora a força trágica conseguida com o "No desabar do jantar noturno", o sintagma "toda preta", além de caracterizar não só a voz sussurrante e o sofrimento da mãe, estende esse atributo à própria vestimenta de luto usada na época. O escritor usa, com perícia, o recurso da sinédoque: a voz (parte) pela mãe toda.
Se o texto mantém seu substrato narrativo, tem agregado um componente poético inegável.
Segundo texto literário: 8. Fraque do ateu
Saí de Dona Matilde porque marmanjo não podia continuar na classe com meninas.
Matricularam-me na escola modelo das tiras de quadros nas paredes alvas escadarias e um cheiro de limpeza.
Professora magrinha e recreio alegre começou a aula da tarde um bigode de arame espetado no grande professor Seu Carvalho.
No silêncio tic tac da sala de jantar informei mamãe que não havia Deus porque Deus era a natureza.
Nunca mais vi o Seu Carvalho que foi para o Inferno.
Análise do texto
No terceiro parágrafo deve-se observar a utilização de uma série de figuras de estilo que se comprometem entre si e que não podem ser identificadas de forma pura no trecho "começou a aula da tarde um bigode de arame espetado" : é sinédoque - a parte pelo todo? É prosopopéia ou personificação - atribuição de linguagem, sentimentos e ações de seres humanos a seres irracionais ou inanimados? É hipálage - atribuir-se a uma palavra de uma frase o que convém a outra: quem começou a aula foi Seu Carvalho e não o bigode?
Seja lá qual for a figura, ou sejam as três juntas, o escritor se mostra um mestre na arte da caricatura como fixação do perfil da personagem: o bigode é o traço mais marcante no professor.
No parágrafo seguinte, aquele paradoxal "silêncio tic tac", em que se ressalta a solenidade do domínio do som do relógio na sala, a fala do menino remete diretamente ao discurso do professor e à consequência das suas idéias. No "foi para o Inferno" do último parágrafo se superpõem a inocência do menino, a ideologia da mãe, sua religiosidade, e a providência prática que tomou na expulsão do professor do colégio.
Ler o romance em questão é navegar pela prosa-poética de Oswald de Andrade e por seu talento literário.
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